É um dos mais recomendados romances policiais, publicado pela primeira vez no longínquo ano de 1979. Assinado pelo barcelonês Manuel Vázquez Montalbán, “Os Mares do Sul” (Quetzal, 2024 – reedição) é um cartão-de-visita gravado a ouro de Pepe Carvalho, detective e gastrónomo, um ex-comunista desencantado e dado a contradições, que usa livros como acendalhas, confessando a Biscuter, o seu assistente, confessor e cozinheiro, o descrédito total na modernidade: “– Nós, os detectives privados, somos os termómetros da moral estabelecida, Biscuter. Esta sociedade está podre, é o que te digo. Não acredita em nada”.
Após três meses sem casos, onde nem sequer um marido desconfiado do adultério entrou pela porta, o regresso à actividade dá-se com Vildecans, um tipo “impecável até mesmo na calvície”, advogado do agora morto Carlos Stuart Pedrell, um construtor com apresentável pedigree. Segundo Vildecans, Pedrell vivia uma espécie de crise de meia idade, tendo acelerado o seu projecto de deixar tudo e ir para uma ilha da Polinésia. Deixou os negócios encaminhados e desapareceu de cena. Meses depois, “o corpo de Stuart Pedrell aparece num descampado de Trinidad, apunhalado, e hoje temos a certeza de que nunca chegou à Polinésia. Não sabemos onde esteve, o que fez durante todo esse tempo, e temos de o saber”. Segundo a mulher, Pedrell era fã de Gauguin, obcecado com a sua história e, tal como ele, queria “deixar tudo e ir para os mares do Sul”.
Através de Pepe Carvalho, Manuel Vázquez Montalbán olha de forma impiedosa para a política da Catalunha e as suas classes dirigentes, para o comunismo, o socialismo, o fascismo e sempre para Franco, num livro em que damos conta do nervosismo habitual de Pepe sempre que passa diante de um Comando da Polícia; da sua indiferença perante a ideia de envelhecer com dignidade, preferindo preparar uns ovos estrelados com chouriço a um footing matinal; do vinho branco como elemento fundamental em qualquer dieta, ou de um cálice duplo de Marc de Champagne gelado capaz de igualar qualquer transfusão de sangue; de Charo, “pernas abertas, mãos nas ancas, a cólera gotejando da cara miúda branqueada pela base da maquilhagem”, a sua eterna companheira.
Não deixa de ser curioso que de Pepe Carvalho, que emenda os seus frustrados esforços na chaminé acendendo fogueiras impressionantes com recurso a livros – que vai seleccionando da sua deteriorada biblioteca -, chegue um dos elogios maiores à literatura. Afinal, “como amaríamos se não tivéssemos aprendido nos livros como se ama?”. Cinco estrelas.
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