“Este romance não se baseia em factos reais. Este romance baseia-se em personagens reais. Os factos que se narram são os que essas personagens narram.”
Assim avisa Manuel Jabois no início do seu mais recente romance, “Mirafiori” (Alfaguara, 2024), situando-o num limbo entre a realidade e as ficções nascidas dos seus mistérios e ambiguidades. Fica lançada a dúvida quanto às palavras do narrador, um homem que viaja de comboio para reencontrar o amor da sua vida após mais de vinte anos de convivência, seguidos por cinco de separação – anos ao longo dos quais nunca deixou de pensar nessa relação.
Na sua mente, imagina rever a mulher amada, Valentina, à sua espera junto à estação de comboios, encostada à porta do velho Fiat 131 Mirafiori branco que herdou do pai. O mesmo carro onde o par de namorados se reunia, na adolescência, para passar o tempo, até acabar por se tornar uma espécie de casa para ambos. O fluxo da memória evoca o tempo em que Valentina era uma jovem estranha, solitária e inteligente, capaz de transportá-lo para um novo mundo de “assombro e expectativa a cada passo”, fazendo-o sentir-se “sempre como Colombo embarcado numa nova expedição”. Porém, Valentina é, desde criança, portadora de um segredo que torna insegura da sua percepção do mundo – e esse segredo, partilhado com o namorado, marcará a relação de ambos e o desenlace do enredo.
A história de amor não tem um final feliz. Na casa dos 20 anos, chegam a Madrid juntos, decididos a triunfar na capital, ele pela escrita e ela através da representação. Porém, surge um fosso entre eles que não para de crescer, à medida que ela cumpre os seus sonhos, enquanto ele se afunda numa espiral de auto-destruição que envolve consumo de droga e múltiplas traições, reagindo de forma tóxica ao ressentimento nascido da disparidade no êxito profissional. A jovem promessa literária torna-se um quarentão a evitar, cujos excessos perderam a graça e cujo talento se limita à escrita para a imprensa de obituários antecipados de gente ainda viva.
As obsessões do protagonista arriscam tornar-se fastidiosas, mas esse efeito é equilibrado pela beleza triste das memórias de um amor que se transformou em “algo intermitente, resquícios deixados a boiar no mar e que ainda prometiam brilho se nos aproximássemos o suficiente para os admirar, mas longe o bastante para que não nos pudessem fazer mal”. Essa tristeza alcança novas dimensões no epílogo, quando a voz de Valentina surge em discurso directo, iluminando sob outro prisma o que fora contado até então e surpreendendo todos aqueles que, perante vários indícios, não se tiverem lembrado do filme “O Sexto Sentido”.
Surpresas (ou não) à parte, o autor galego explora bem aquela vereda do realismo mágico que toca nas incertezas quanto à vida e à morte, lançando até a dúvida sobre a verdadeira dimensão da sua ficção: “Convém referir que não sabemos quantos romances se escrevem como produto da frustração de um autor porque este sabe que, se o identificar como não-ficção, ninguém o levará a sério e até acabarão por se rir dele”.
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