Para a maioria dos leitores que apreciam a escrita e a ilustração criativa e ímpar de Afonso Cruz, a publicação de um livro do autor é sempre um acontecimento feliz. Desta vez, a editora Fábula reúne num só livro a escrita (e ilustração) de Afonso Cruz e a leitura reflexiva de Joana Bértholo, sempre com um olhar provocador e questionador das nossas consciências, mas simultaneamente elegante e sensível. “O Pai Natal Não Vive no Polo Norte” (Fábula, 2024) é um pequeno grande livro que começou como “proémio a um romance paradigmático”, o fascinante “Para Onde vai os Guarda-Chuvas”. Não é mais um livro sobre o Natal: é um livro peculiar sobre a quadra natalícia.
A narrativa simples, mas não simplista, de ironia aprimorada, assertiva e paradoxal, é-nos apresentada em página simples e em paralelo com uma ilustração. Desta vez, não encontramos na ilustração a ampliação da hermenêutica do texto; pelo contrário, descobrimos antinomias que impulsionam o pensamento crítico.
Os leitores de Afonso Cruz já se habituaram ao jogo da contradição como provocação. Filosoficamente, a contradição é um exercício lógico que não deve (nem pode) ser confundido com o contrário, evitando, desta forma, equívocos. Nas suas contradições, o autor quer testar os limites da palavra, do pensamento, para compreender a essência, as mudanças e as transformações. Conseguiremos reflectir sobre a essência do real sem pensarmos nas contradições da realidade? Ou será que é no perene devir que encontramos o verdadeiro sentido da realidade das coisas, do que sentimos e vivemos?
Dizer uma coisa e negá-la é um alerta. Para parar e (re)pensar, mas também um reforço da mensagem que se quer transmitir. Todos queremos festejar o Natal, época dedicada à família, à vivência dos valores de solidariedade e generosidade, do amor e da compaixão, da simplicidade e da fraternidade. Teremos consciência de que nem sempre as nossas atitudes são harmonizáveis com estes valores? Serão estes valores conciliáveis com o consumismo desenfreado, com a superficialidade e a aparência? Afinal, que Natal é queremos? Em uníssono, expressamos o desejo de um “Feliz Natal”, mas afinal qual é o significado de um “Feliz Natal”?
“O Pai Natal Não Vive no Polo Norte” tem um magnífico e lúcido posfácio escrito pela Joana Bértholo. A talentosa e perguntadora escritora avisa que se trata de uma, de muitas, leituras possíveis – “li-o como uma crítica duríssima à sociedade tardo-capitalista. Outros leitores podem fixar-se mais na corrente do texto do que na imagem, sublinhar ou aligeirar a justaposição entre as duas”; Li o posfácio como um manifesto de (des)esperança e (des)encantamento sobre a época natalícia, sobre o desfasamento do que se anuncia e do que se pratica, sobre o que é e o que deveria ser, sobre o “ser” e o “ter”.
Afonso Cruz é o multipremiado autor de romances como “Para onde vão os guarda-chuvas” ou “Jesus Cristo bebia cerveja”. Recebeu, entre outros: Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores; Prémio Fernando Namora; Prémio Sociedade Portuguesa de Autores; Prémio Time Out – Melhor Livro do Ano; Prémio da União Europeia para a Literatura; Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco; Prémio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil do Brasil (FNLIJ) e Prémio Literário Maria Rosa Colaço. Assina, desde Fevereiro de 2013, uma crónica mensal no Jornal de Letras, Artes e Ideias sob o título «Paralaxe». Os seus livros estão traduzidos para mais de vinte línguas.
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