Todos conhecemos o seu nome. Maomé, nos tempos que correm, marca presença nos jornais quase diariamente – e não pelas melhores razões. No entanto, a generalidade dos ocidentais pouco sabe sobre este influente vulto da história, criador da religião em maior crescimento na actualidade: o Islão. O que poderá mudar com “O Primeiro Muçulmano – A História de Maomé” (Elsinore, 2015) uma narrativa cativante da vida do Profeta que deu origem ao Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Nos dias que correm, uma biografia de Maomé não é um projecto isento de risco, para mais sendo-se agnóstica, britânica e naturalizada americana. A autora, Lesley Hazelton, assume logo no princípio do livro a sua “postura agnóstica, deixando de fora a reverência por um lado, e o estereótipo e o moralismo por outro, sem falar da entediante cortina de circunspecção que fica no meio.”
A antiga correspondente do The New York Times em Israel, especialista em assuntos do Médio Oriente, escreveu este livro não como um estudo académico, feito para especialistas, mas como um trabalho de História destinado a um público mais amplo. Hazelton faz uma cuidadosa e delicada separação entre facto e lenda, humanizando Maomé. “Para escrever correctamente sobre uma figura histórica, é preciso empatia e imaginação”, afirma. Por vezes, essa imaginação leva-a a especular sobre o que Maomé terá pensado ou sentido, o que evidentemente não pode ser provado. No entanto, o estilo ajuda-nos a entender melhor o biografado. E a vida de Maomé é, sem dúvida, uma história extraordinária para contar.
É dado particular destaque à sua condição de orfão. Nascido sem pai, foi entregue pela mãe a uma ama beduína para que o criasse. Essa infância parece tê-lo marcado, fazendo dele alguém permanentemente desterrado, procurando uma pertença que sempre o iludiu.
Aos 40 anos, mercador abastado, a sua vida mudaria para sempre com a revelação divina vivida no Monte Hira: é confrontado com o Anjo Gabriel, que o indica como um mensageiro de Deus, escolhido como o veículo para as revelações que viriam a constituir o Corão. Maomé reage com o mais puro pavor, medo e descrença: pensa que só pode estar louco, a única reacção humana e sã. Ele duvida.
Hazelton defende que a dúvida é essencial para a religião. Se abolirmos toda a dúvida, o que resta não é fé, mas uma absoluta e implacável certeza de se ser dono da Verdade (com V maiúsculo). Essa certeza transporta consigo o dogma e a arrogância do fundamentalismo.
É aliás irónico que os fundamentalistas usem a expressão “infiel” quando se referem a alguém que não partilha da sua fé. O absolutismo que praticam é o oposto da fé muçulmana. Na verdade, são eles os infiéis. Eles não têm dúvidas, só certezas – encontraram um verdadeiro antídoto para a reflexão.
Fundamentalistas militantes não são seguidores do Islão, afirma a autora. São um culto próprio, alimentado com o sangue dos outros. Não é fé, é fanatismo, e é preciso parar de confundir uma coisa com a outra. A verdadeira fé não tem respostas fáceis. Envolve uma luta, uma dúvida constante, seja qual for a nossa crença. O próprio Maomé, como Profeta, lutou durante toda a sua vida com a dúvida.
Maomé foi orfão, mercador, profeta, depois exilado, e um temível líder. Foi um naturalista convicto, defensor do mundo natural e, também, um estratega político e militar de excepção. Umas vezes cruel e sanguinário, outras magnânimo e pacífico. Falou muitas vezes acerca de justiça social e reformismo.
É uma figura complexa, que não se esgota num rótulo fácil, e o livro dá conta de todas estas facetas de uma forma refrescante: faz de Maomé um homem de carne e osso, que podemos imaginar atravessando as ruas quentes e estreitas de Meca.
Apesar de ter sabido usar a guerra e a crueldade para com os seus inimigos, Maomé estaria hoje furioso com aqueles que afirmam matar em seu nome. Denunciaria o terrorismo pelo que é, não só criminoso como, também, uma deturpação obscena de tudo aquilo por que ele sempre lutou.
Diria provavelmente o que diz o Corão: “quem tira uma vida, tira a vida de toda a Humanidade. Quem salva uma vida, salva a vida de toda a Humanidade.”
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