Uma mulher com alma de artista procura em Itália “uma obra contra a qual criar”, cruzando-se com dois homens chamados Piero: um pintor que se torna seu amante, e Piero della Francesca, um dos grandes mestres do Renascimento italiano. Com estas três personagens, Leonor Baldaque – que já conhecemos como actriz de Manoel de Oliveira – compõe um livro que, embora pequeno, é uma longa carta de amor à arte.
“Piero Solidão” (Quetzal, 2024) chega agora a Portugal, depois de ter sido publicado em França em 2020. É o segundo livro da autora, que escreve em francês, mas o primeiro a ser editado no nosso país. Aquilo que nele descobrimos é uma prosa poética inspirada, narradora de uma história de fascínio pela mente criativa e seu potencial para gerar beleza.
Piero della Francesca, pintor de figuras que “parecem ver o que é invisível ao olhar dos homens”, ganha vida perante os olhos da personagem feminina, pois “cada olhar lançado sobre Piero desenha de novo a sua obra, e é porque o olhamos que ele vive”. Na sua esteira, sob o calor de Itália, ela sente que “quando se caminha pela rua, o ar que se respira e todas as fachadas e as pessoas que passam dão essa vontade, louca, de viver no seio de uma criação, mesmo que isso não dure mais do que o tempo desse esforço, dessa partida, e dessa viagem”. Uma viagem que pode decorrer apenas no pensamento do artista – um pensamento muitas vezes demasiado vasto para ser traduzido numa tela, em paredes ou numa folha de papel, e que faz pensar na imensidão de possibilidades que o pensamento não registado deixa por concretizar.
Os momentos de reflexão espoletados pela contemplação de pinturas renascentistas alternam com os que nascem da observação do processo criativo do amado, enquanto ela o vê agir a partir do fundo do seu pensamento, do lugar onde nasce a imaginação, alheado a tudo quanto o rodeia, “partindo para o interior de cada gesto, engolfando-se nas suas ambições, e num presente que sempre se agita e embriaga, apaga todos os outros tempos, apaga tudo sem esforço”.
Para o bem e para o mal, esta beleza afigura-se inseparável da solidão – algo de que o artista foge nas ocasiões em que a obra em curso deixa de o atrair, mas para a qual acaba por regressar, até chegar a apreciá-la. Uma solidão que acaba por ser também a da amante do artista, quando procura o amado e encontra fechada a porta para o espaço imenso que é a vida criativa dele.
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