“No sonho vê que todos os fantasmas estão perfilados como uma guarda de honra. Eles que esperem”. No ano em que completou 60 anos, “idade em que os balancetes e contabilidades aparecem, mesmo aos que não pretendam fazê-los”, Rodrigo Guedes de Carvalho assina aquele que talvez seja o seu romance com mais autobiografia lá dentro, não faltando um narrador que, a dado momento, se torna personagem desta intriga familiar.
Família é, aliás, o núcleo duro da escrita do autor, e “As Cinco Mães de Serafim” (Dom Quixote, 2023) acrescenta-lhe mais algumas definições, recusando a ideia de família tradicional feita com retalhos gramaticais como “parentesco”, “estirpe”, “linhagem” ou “geração”: “E as famílias que não têm nada disso? O grupo de pessoas que moram juntas e se olham como pais e mães e filhas e irmãs, e não o são. Nada de nada. O que chamar a um conjunto de absolutos distantes, a que uma mulher, enlouquecida talvez pela dor, resolver chamar família?”.
Esta é a história de Miguel Serafim, “o menos suicida de todos os seres”, que veria com bons olhos a imortalidade e se tornou “maestro contra o caos do mundo”. Alguém que herdou um apelido – Temeroso – que o marcou como um ferro quente, perguntando-se muitas vezes “porque lhe calhou esta ambiguidade que traz na alma e no documento de identificação – significa que tem medo, ou que consegue fazer medo aos outros?”; é a história de Maria Virgínia Landim da Silva, mãe de Serafim, para quem “é a vida” serve de ponto final para qualquer tema ou discussão – e que, trocando as voltas ao mundo, abraçou para si mesma uma missão transviada; é também a história de José Paulo Azevedo, amigo de infância de Serafim, que carrega o peso de uma mãe suicida.
O autor alimenta com alma de maquinista a vapor esta história que atravessa um século, desde o nascimento de Maria Virgínia, em 1923, numa casa bem posta da alta burguesia, até ao ano de 2023, momento temporal em que Miguel Serafim reencontra um amigo do qual perdeu o rasto e o obrigará a percorrer de volta o caminho. Afinal, “o passado apanha-nos sempre no fim”.
Separações conjugais, segredos e mentiras, amizade, perdão, saudade e sobretudo a ideia de recomeço, num livro que nos lembra que isto da vida só acaba mesmo no fim. Pelo meio, ainda descobrimos um mimo literário que inclui Jeffrey Eugenides e as quatro irmãs Lisbon – um verdadeiro achado. Se “As Cinco Mães de Serafim” não for o melhor dos livros de Rodrigo Guedes de Carvalho, então não terá falhado por muito.
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