Luís Corte Real já nos transportou várias vezes para versões diferentes do nosso mundo, primeiro através de um detective do oculto que investiga ameaças sobrenaturais em pleno século XIX, nos dois volumes de “As Aventuras de Benjamim Tormenta” (ler críticas aqui e aqui), depois com a história alternativa de um poderoso império português que resultou da inversão do resultado das Guerras Liberais, em “Lisboa Noir” (ler crítica). Agora, no quarto livro, “Reinos Bastardos” (Saída de Emergência, 2024), o autor estreia-se na fantasia épica, apresentando-nos um mundo imaginário habitado por humanos e ogros, além de remanescentes dos antigos arcanos que vieram das estrelas e os criaram a ambos, num planeta cuja lua tem o seu próprio satélite.
Este é o mundo da humana Runa, uma heroína carismática de olhos verdes e cabelos cor de fogo, cuja vida é, desde o início, marcada pela violência. Ainda com poucas semanas de vida, rodeada por um cenário de destruição, é entregue pela mãe moribunda a um famoso guerreiro ogro que, para criá-la, renuncia ao seu estatuto elevado e passa para a casta dos servidores. Mais do que uma dívida, une-o à pequena um amor paternal e o desejo de proteger aquela que sabe que passará pelo mundo “como um relâmpago pelos céus”.
A revelação gradual da estrutura da sociedade dos ogros, das suas crenças e tradições, é absolutamente fascinante, embora os humanos os considerem brutos e inferiores, chamando “Reinos Bastardos” aos seus territórios. Runa cresce num clã onde é o único ser humano livre – todos os outros são cativos, incluindo aquele que é, durante vários anos, o seu melhor amigo –, absorvendo os seus valores, mas mantendo sempre uma rebeldia notável, que a leva a aprender a usar a astúcia para enfrentar inimigos fisicamente mais fortes. Embora pareça ter encontrado o seu lugar quando, já adolescente, se torna aprendiz de Mmor, a velha curandeira, esta pressente uma alteração na aura do mundo, “como uma mortalha que cobre o clã e as suas terras”, a qual não tardará a afectar drasticamente a vida de Runa.
Não é neste primeiro volume da saga A Canção de Runa que a protagonista satisfará a “curiosidade fervilhante” que sente pelos Reinos Humanos – estes darão o título ao segundo volume. Em vez deles, Runa é aqui levada a explorar testemunhos misteriosos da grandeza dos arcanos – “imensamente poderosos, orgulhosos e particularmente cruéis”, segundo Mmor –, bem como florestas percorridas por brumas que funcionam como portais interdimensionais, dos quais saem às vezes monstruosidades. Mas apesar de toda esta fantasia com laivos de ficção científica, os afectos estão no cerne da acção e a demanda principal é pela identidade pessoal num contexto adverso. A par de perdas, traições e todo o tipo de violências, há também amor, amizade, superação e esperança.
O resultado é um épico intenso, difícil de largar, com um enredo que se desenrola a bom ritmo, cheio de acção, com personagens magistralmente construídas e excelentes descrições, sem um único caractere de prosa inútil. As surpresas são bem doseadas e os mistérios que ficam por resolver são excelente material para estimular a imaginação, levando-nos a congeminar teorias. Tudo se conjuga para fazer-nos ansiar pelo próximo volume.
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