Gabo (Gabriel Garcia Márquez, 1927-2014) dispensa apresentações e merece respeito. Escreveu com alma e com arte, até ao fim, mesmo quando a perda de memória já o condicionava. Também até ao fim lutou pela preservação da sua identidade, recusando-se a publicar trabalhos que considerava menores. Como o próprio afirmara, a memória era a sua matéria-prima e ferramenta, sem a qual não lhe fazia sentido persistir.
“Vemo-nos em Agosto” (Dom Quixote, 2024) é um livro póstumo de Gabriel García Márquez, editado dez anos após a sua morte, entrando imediatamente na lista dos mais vendidos em quase todos os países onde foi lançado. Ou não fosse Gabo mestre de um realismo fantástico, combinando quotidianos surreais com personagens poderosas e perfis enigmáticos. Através de diferentes perspectivas e personagens, explorou os usos e abusos do poder, em especial o exercido pelo homem patriarca, demonstrando uma capacidade única para cativar gente de muitas culturas. Foi apreciado por chineses e russos, iranianos e norte-americanos, franceses e sul-africanos, japoneses e húngaros, que nele reviram – e nos seus livros – traços poderosos da sua cultura, no retrato de certos locais e no caráter dos seus habitantes. Até os árabes afirmaram que a literatura mudou sob a sua influência.
Um dia Gabo disse algo do género: os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, mas a vida obriga-os a darem-se à luz a si mesmos uma e outra vez. Talvez venha daqui o seu pragmatismo e a proximidade que mantém com os factos que relata, evitando divagações teóricas, rastreamentos psicológicos ou longas explicações. Em geral, são os factos que se explicam por si próprios.
“Vemo-nos em Agosto” corresponde a seis relatos autónomos com a mesma protagonista, numa perspectiva feminina do amor em idade madura, alguns dos quais publicados autonomamente como contos. Uma mulher visita anualmente a ilha onde está sepultada a sua mãe e, a cada ano, encontra-se, assumindo a audácia de querer mais, de procurar prazer, de se conferir o direito à descoberta, sem ficar refém de nada, dos homens e das emoções.
O livro vale por si próprio, não se reconhecendo ganhos na sua comparação com a obra magnânima de Gabo – ambis merecem respeito e espanto pela entrega de Gabo, até no seu apelo final à destruição destes últimos textos. É esmagadora a responsabilidade de contrariar a sua vontade e a sua confiança, mas é um privilégio para o leitor conhecer mais um pouco da sua alma e do seu método, para tal contribuindo as notas finais do editor, Cristóbal Pera, e quatro páginas fac-similadas da pasta marcada como “Versão 5” do texto, ordenadas, comentadas e classificadas pelo próprio Gabo.
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