“Ler com febre é quase como jogar na lotaria, porque ao conteúdo do texto acontecerá uma de duas coisas: ou se dissolve em nada ou penetra profundamente nas fendas abertas, por acidente, por uma temperatura corporal descontrolada.”
Em estado febril, impelida por “uma veia de emoções estimulada pela doença e pelo medo”, uma mulher procura, na estante dos livros, o romance que uma antiga namorada lhe ofereceu anos antes, quando convalescia de outra febre. Como se um fio condutor unisse passado e presente, o tempo dobra-se sobre si mesmo, recordando-lhe versões anteriores de si própria e pessoas que fizeram parte da sua vida. Eis a premissa que a sueca Ia Genberg desenvolve no seu terceiro romance, “Os Detalhes” (Dom Quixote, 2024), que ganhou no seu país natal o prestigiado Prémio August para o melhor livro de ficção em 2022, seguido pelo Prémio Literário Aftonbladet em 2023 – além disso, após a tradução para inglês, foi incluído pela revista The New Yorker entre os melhores livros de 2023, e seleccionado como candidato ao Prémio Booker Internacional de 2024.
Mantendo uma prosa bem ritmada e atenta aos pormenores que definem pessoas e relações, a obra divide-se em quatro capítulos, dedicados a igual número de personagens cujo percurso se entrelaçou com o da narradora: a já referida namorada, com quem ela viveu um amor intenso e que depois se tornou uma figura pública (Johnanna); uma amiga instável com quem partilhou a habitação (Niki); o dançarino arrebatador que gerou a sua filha mais velha (Alejandro); e a mãe traumatizada e ansiosa (Birgitte). Todas parecem, pelo menos a dada altura, possuídas por alguma espécie de febre, e acabam invariavelmente por representar uma perda para a narradora, por oposição a Sally, a amiga leal que atravessa o livro. Contudo, é a recordação desses relacionamentos que leva a protagonista a entender melhor o passado, as acções alheias e quem ela própria foi, para em seguida construir o seu presente. No fundo, como acaba por concluir, nenhuma relação terminou realmente, na medida em que todas continuam a influenciá-la. Não será por acaso que permanece anónima, uma vez que a sua identidade depende muito das interacções com os outros, ao ponto de não saber qual das suas vidas secundárias deve servir de referência.
Entre relatos não lineares de amores, amizades e rupturas, acompanhamos o estilo de vida dos jovens adultos de Estocolmo nos anos 90, admiramos o funcionamento da memória e recordamos o impacto da literatura na experiência humana, não só como mais um detalhe caracterizador de indivíduos e relações, mas também como ferramenta catártica: “Retomo a escrita depois da febre, como se uma velha ferida há muito desejada se tivesse reaberto e começado a sangrar, e creio que a escrita é, como a vida, um puzzle incompleto formado por imagens de outras pessoas, por imagens de quem verdadeiramente representam”.
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