Em Novembro de 2021, aos 79 anos, a britânica Jane Campbell reuniu treze histórias sobre experiências de mulheres idosas, tornando-as narradoras das suas próprias vidas. Deu-lhes espaço para contarem as suas histórias, escolhendo registar o que foi efectivamente importante, o que nunca contaram a ninguém e como gostariam de ser recordadas. “Escovar a Gata e Outras Histórias” (D. Quixote, 2024) é o primeiro livro de uma psicoterapeuta que conseguiu ver para além das prescrições sociais, dos preconceitos sociais e políticos, de género ou de idade, dando voz e protagonismo à vida íntima de mulheres que quiseram continuar a rescrever as suas vidas, a descobrir o amor e, acima de tudo, o prazer não necessariamente carnal.
Mulheres como a doce e triste Susan que, na cama da unidade geriátrica, olhava para Miguel, para o seu corpo e para as suas mãos, censurando-se pelo desejo e pela lascívia que sentia, por aquela vergonha profunda que, durante anos, lhe havia sido incutida por uma certa ideia de mulher e do que era correto, até no pensar e sentir; como Nell, e a sua escolha de morrer quando vencera mais uma batalha de esconde-esconde com a sua memória, lembrando-se da beleza da rapariga que socorrera, do prazer sentido ao observar a sua nudez mutilada, do seu perfume ensanguentado, da sedução do ângulo da sua coxa nua. Como era possível a coexistência do sofrimento e do prazer?
São histórias de uma libido redescoberta, por vezes subtil ou camuflada pelo prazer de fazer tão só o que apetece, noutras com um prazer embrutecido, acordado de memórias que se julgavam perdidas e de capacidade que se havia demitido de existir. São histórias de mulheres que se assumem como tal, integrando o prazer na luta pela sobrevivência – o prazer de fazer o que lhes apetece, nalgumas situações muito para além do carnal, libertando a sua vontade e reassumindo o controlo do seu corpo.
São estas as histórias, mas poderiam ser muitas outras. As mulheres que optam por se despojar daquilo que, por tradição, acumularam, e por desafiarem as opiniões dominantes sobre o que significa ser velho. Experiências de assassínio, suicídio, incesto, perturbações psiquiátricas, sexo obsessivo, contrariando a expectativa da sociedade de que sejam assexuadas, anódinas, desapaixonadas e descerebradas. As mulheres de idade, que podem até ser convencidas de que têm que pedir desculpa pelas decisões que tomaram, por terem uma vida longa e preenchida, por se desfazerem da vida que as famílias lhe atribuem. Relatos de um certo despojamento voluntário, agarrando a oportunidade de alterar a passividade do envelhecimento e libertarem-se de coisas que são um fardo, do peso psicológico, de armadilhas emocionais, de velhos hábitos ultrapassados. Mesmo quando a mensagem comporta dor e trauma, não é evidente, antes eivada de notas de subtileza.
Não é todos os dias que se encontra tamanha audácia, tanto nos comportamentos relatados como na forma respeitadora e não populista como são descritos por Jane Campbell. Encontramos, em ambos, capacidade para lidar com as pressões de perpetuar uma certa forma de representar a longevidade do desejo, de enfrentar o medo do desconhecido, o afecto de familiares e amigos, de encorajar o pensamento independente destas (e outras) mulheres que, em nome da segurança, ficaram muitas vezes aprisionadas a convenções e a medos.
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