Philip Kerr pode ter muita fama como autor de policiais, mas este “Mercado de Inverno” (Porto Editora, 2015) dificilmente será recordado pela sua mestria enquanto obra de mistério. Na verdade, o mistério nem é grande coisa, sendo deslindado um pouco à trouxe-mouxe, com uma reviravolta que surge do nada para despachar a resolução do crime e terminar o romance com um laçarote compostinho. Porém, se peca por falta neste aspeto, é um sucesso nos restantes: uma leitura compulsiva, apaixonada e vibrante, ou não fosse o tema o futebol. O assunto presta-se a paixões e Philip Kerr até pode falhar o remate à baliza do policial, mas isso não o impede de conseguir uma goleada com este romance.
Um carismático e controverso treinador português, empregado num clube da Premier League pertença de um oligarca ucraniano com um passado duvidoso (onde já ouvimos esta história?), é assassinado, cabendo ao seu treinador adjunto encontrar o meliante que tirou a vida ao semideus do relvado. Este é o ponto de partida para um exercício de voyeurismo pelos balneários e engrenagens de um grande clube britânico, feito com gosto, voracidade e energia contagiante. A escrita é de tal modo envolvente que até os leitores menos interessados em futebol se sentirão agarrados pelos globos oculares, incapazes de pousar o volume e arrastados para um mundo que, mesmo que lhes seja estranho ou indiferente até agora, passa a ser uma fonte de fascínio. É como se entrássemos numa realidade paralela, elitista e exclusiva, com valores e princípios muito próprios, sendo-nos oferecido um camarote confortável com vista para a intimidade de um grupo de figuras quase mitológicas.
Os leitores que gostam de bola têm aqui uma excelente oportunidade de se entreterem com uma história contada por um autor claramente apaixonado pela modalidade, pela história e pelos meandros do futebol, ao passo que os leigos recebem um curso intensivo de introdução à Premier League, tão divertido quanto viciante. Mas que não se julgue que Kerr vai pelo caminho do sensacionalismo, que seria certamente mais fácil para nos conquistar, apelando ao nosso moralismo e apetite pelo escândalo. Pelo contrário. Ainda que aborde os excessos e os podres deste mundo, o que fica é a certeza de que este livro foi escrito por alguém que ama e respeita a modalidade, e que aceita este mundo tal como é, sem fazer grandes juízos de valor. Porque, de facto, este é um mundo à parte, um microcosmo que move milhões e paixões, uma verdadeira religião com os seus deuses e crentes fervorosos, com a sua própria mitologia e preceitos. Kerr não se limita a explorar este mundo: presta-lhe homenagem, abre-o para os leitores versados na realidade futebolística e para os que não vão à bola com o esférico, confirmando e desmistificando ideias feitas e retratando figuras que estamos habituados a observar à distância – e não sem alguma ignorância.
“Mercado de Inverno” será, sem dúvida, uma boa aquisição no mercado de inverno livreiro, uma excelente companhia para as tardes de chuva em que não apetece sair de casa para dar uns toques na bola. Lê-se como um filme, ou melhor, devora-se compulsivamente, e ficamos um pouco aborrecidos por terminar tão depressa. Devia ter ido a prolongamento.
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