Em 1940, perante os frequentes bombardeamentos alemães, o casal londrino composto por Millie e Reginald Thompson opta por separar-se da única filha, Beatrix, na esperança de protegê-la da guerra. Aos onze anos, ela junta-se a um contingente de crianças enviadas de barco para a margem oposta do Oceano Atlântico, onde a espera uma família americana desconhecida que aceitou acolhê-la. “Mais Além, O Mar” (Asa, 2023), de Laura Spence-Ash, é a crónica desta separação, dos encontros que possibilitou e das vidas que moldou.
Durante cinco anos, Beatrix vive com os Gregory: Ethan, Nancy, os dois filhos destes, de nove e treze anos, e um pastor alemão. É amada e integrada nessa família de acolhimento, como uma filha e uma irmã. Passa a ser conhecida como Bea e acede a experiências que os pais não poderiam oferecer-lhe, desde um quotidiano animado e confortável em Boston, até aos verões numa ilha idílica ao largo da costa do Maine. Gradualmente, o oceano que a separa dos pais torna-se mais vasto. Num tempo em que os canais de comunicação eram mais limitados, o contacto com eles resume-se à troca de correspondência e telefonemas pelo Natal – e ficam cada vez mais coisas por contar.
Em Londres, Millie e Reginald percebem que perderam uma etapa crucial do crescimento da filha, e a preocupação com a hipótese da sua inadaptação à América é substituída pela certeza de que jamais se reintegrará na vida deles. A relação do casal degrada-se, com Millie a ressentir-se do facto de a partida da filha lhe ter sido imposta pelo marido, que deixou a pequena acreditar que a mãe era a principal responsável pela separação. A felicidade da filha só agrava o ressentimento, levando-a a sentir-se inferior a Nancy no papel de mãe.
Passada a guerra, Bea tem de regressar ao lar original e voltar a ser Beatrix, deixando para trás o seu sitio preferido, a comida de que mais gosta, a equipa desportiva que apoia. O pai faleceu e o reatar da relação com a mãe será tenso. Não surpreende que se sinta num limbo, “presa entre dois mundos”, incapaz de encontrar o lugar aonde realmente pertence.
Se o livro ficasse por aqui, seria já uma boa história sobre relações familiares complexas e a construção de uma identidade pessoal, mas a autora arrisca com êxito ir mais além, prolongando a narrativa por décadas, durante as quais há mais mortes, descobertas, casamentos, nascimentos, reencontros, relacionamentos que se transformam e percursos que divergem enquanto outros convergem. Há quem, contra todas as expectativas, dê por si a levar uma existência que não lhe agrada, e quem tenha surpresas agradáveis com o que o futuro lhe reserva. Os pontos de vista alargam-se a mais personagens, todas elas tão bem construídas e entretecidas umas nas outras, que sentimos genuíno interesse em conhecer o destino que a autora lhes traçou. Segundo uma citação de Shakespeare, “o passado é prólogo”, e a acção do tempo tem muito que se lhe diga.
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