Carlos Antunes morreu em 2021, juntamente com milhares de outras vítimas da pandemia de covid-19. Foi o fim de uma vida agitada, iniciada em 1938, marcada pelo combate anti-fascista e pela dedicação a um ideal de justiça social, motivações interligadas que o levaram a fundar as Brigadas Revolucionárias durante a ditadura do Estado Novo. Em “Carlos Antunes: Memórias de um Revolucionário” (Oficina do Livro, 2024), a jornalista e investigadora Isabel Lindim, sua enteada, utiliza as transcrições de duas entrevistas – uma realizada pela própria, com o realizador Anzé Persin, outra por Margarida Gil – para nos apresentar um relato na primeira pessoa de um percurso fascinante, que vale a pena conhecer.
A história começa com recordações da infância num meio rural minhoto, onde a miséria era tanta que o pequeno Carlos sentia vergonha de usar sapatos quando os outros andavam descalços. Para a consciencialização política, terão também contribuído o “ódio de estimação ao Salazar” nutrido pelo pai, a pouca religiosidade da célula familiar e a leitura precoce de obras contendo posições opostas às do regime, levadas para a casa da aldeia pelo padrinho, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Segue-se a adesão ao Partido Comunista Português, a entrada na clandestinidade e uma série de missões que o levam a destinos como a França, a Argélia, a URSS e a Roménia, onde trabalhou na Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina do partido – num tempo em que a rádio funcionava por onda curta, eram necessárias grandes altitudes, como as dos Cárpatos romenos, para que o som atingisse estratosfera e chegasse a Portugal.
No entanto, a capital romena despertou-o para uma dura realidade: “Eu estava convencido de que os países socialistas eram de organização superior e que as pessoas eram muito felizes. Estava convencido de tudo isso que o Partido Comunista Português e os outros diziam. E finalmente concluí que era tudo ao contrário daquilo que me tinham dito […]”.
As divergências com o partido agravam-se até à ruptura. Com as Brigadas Revolucionárias, empreende uma série de acções destinadas a impedir a continuação da Guerra Colonial, recorrendo a bombas, sabotagem e assaltos a bancos, mas sempre com a preocupação de não matar ninguém. A “dimensão subversiva da ironia” subjacente a algumas destas iniciativas surpreende e contribui muito para a vivacidade da narrativa. Estamos perante alguém que consegue adicionar toques de humor à história recente da Europa e das suas ex-colónias, sendo admirável que tal capacidade tenha resistido aos quatro anos e dois meses que passou preso, sem condenação, após o 25 de Novembro de 1974.
Em discurso directo, Carlos Antunes menciona contactos com personalidades políticas, descreve operações que a imprensa da época considerou inexplicáveis, desmente afirmações escritas acerca dele – inclusivamente numa tese de doutoramento, segundo a qual recebera treino no Camboja – e revela interesses culturais, ligados sobretudo ao teatro. Assim se traça o retrato de um homem incomum e multifacetado, bem como o de uma fase conturbada do nosso passado recente.
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