Aos 33 anos de idade, Estela García deixou a amada ilha onde nasceu, no sul do Chile, para procurar trabalho na capital, contra a vontade da mãe, prometendo-lhe que voltaria dentro de meses, com muito dinheiro para ampliar a casa e comprar-lhe uma televisão, um par de ténis novos e alguns animais. Porém, a rotina é traiçoeira e a realidade perturba muitos planos, pelo que esse regresso nunca se deu. No início de “Limpa” (Elsinore, 2023), encontramo-la com 40 anos, detida, a discursar para aqueles que supõe estarem a observá-la por trás de um espelho, e a história que conta não é apenas a sua, mas também a de “uma menina infeliz, uma mulher que vive de aparências e um homem calculista”.
Durante sete anos, Estela trabalhou como empregada doméstica interna de um casal burguês, consumindo os seus dias com idas ao supermercado, cozinhados, limpezas e variados deveres de ama-seca de uma criança nascida uma semana após a sua contratação. As noites e os domingos, por seu lado, eram passados num quarto impessoal, separado da cozinha por uma porta de vidro opaco, que nunca considerou seu. No entanto, “nada é tão simples como parece”: a disparidade de poder entre empregada e empregadores estabelece um quotidiano cruel, onde pequenas humilhações convivem com exibições hipócritas de magnanimidade. Há, por exemplo, a crença imediata de que um erro gramatical da criança se deve ao convívio com a empregada (supostamente) ignorante. Há uma ocasião especial em que Estela é convidada a sentar-se à mesa com a família e a partilhar uma refeição para quatro pessoas, sendo esperado que, no final, se levante para recolher toda a loiça e servir uma sobremesa só para três.
Após quase ter perdido a voz, Estela parece sentir prazer em controlar o ritmo da narrativa e assumir um tom desafiador daquilo que imagina serem as expectativas dos ouvintes. A par da necessidade de fazê-los compreender como chegou ao ponto em que se encontra, nota-se o seu próprio desejo de perceber o desenvolvimento da realidade opressiva que se apoderou da sua vida e acabou por vitimar a filha dos patrões, cuja morte é anunciada logo no primeiro capítulo. A descrição dos comportamentos anómalos desta criança, treinada pelos pais para procurar a perfeição, que cedo aprende a reproduzir as dinâmicas de poder dos adultos e a explorá-las em benefício das suas próprias vinganças, é um dos elementos mais perturbadores do livro.
A autora, a chilena Alia Trabucco Zerán, tece uma teia densa de rancores, não só de Estela contra os patrões, mas também destes contra a subalterna que lhes testemunha as fraquezas e as infelicidades. Toda esta micro-violência insidiosa, geradora de tragédias maiores, é gradualmente associada às tensões sociais que agitam o país e que entram no lar familiar através dos noticiários, antes de o invadirem de forma mais brutal. No fundo, as interpelações da protagonista a um público que pode nem existir são interpelações da autora aos seus leitores.
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