Para muito bom leitor de jornal, Luís Afonso é aquele cartoonista que tanto desbasta Barba e Cabelo (Jornal A Bola) durante horas como é capaz de aviar um par de canecas no mais próximo Bartoon (jornal Público). O que talvez alguns não saibam é que, para lá das tiras diárias com muito humor, este Aljustrelense tem publicado, de forma espaçada, prosa da boa.
“O Comboio das Cinco” assinalou a estreia literária de Lopes, o escritor pós-moderno, e revelou ser uma pequena pérola escondida entre a concha do humor descontrolado, a crítica social e o desabafo filosófico. Uma viagem conduzida por Fragoso e Madalena que, após uma guerra acesa pelo domínio dos megahertz, acabam estacionados numa valeta à beira da estrada, não lhes restando outra alternativa a não ser apanhar um comboio propenso a curvas e contracurvas, espaços em branco e buracos pintados de negro.
Houve também “O Quadro da Mulher Sentada a Olhar Com Cara de Parva” (Abysmo, 2016), preenchido por seis pequenos contos com um grande sentido de poupança, feitos de uma prosa acutilante e um sentido de humor que impeliam a uma reflexão mais ou menos profunda sobre a vida.
A mais recente pequena-grande supresa chegou às livrarias mesmo no final de 2022, integrada na colecção Contos Singulares – feita de contos únicos, entre autores nacionais e estrangeiros -, da Relógio D`Água, que nos tem servido alguma prosa de fôlego curto exemplar. Como este “O Chef” (Relógio D`Água, 2022), onde em cerca de 20 páginas se inventa uma história com mudanças suficientes para acabar em modo montanha-russa.
“Há que saber viver sem as luzes sobre nós. Eu tive sempre consciência das minhas limitações”. Quem o diz é o narrador desta história gourmet, que nos dá a conhecer o fascinante Hippolite, homem de mil caras e ocupações, como as de “pintor talentoso”, “génio da ciência” ou “artista de palco”. Curiosamente, o encontro entre os dois dá-se num restaurante, onde o bem-comportado narrador se decide empregar por não ter jeito nem vontade para os estudos, travando com Hippolite uma amizade para a vida e aberta a qualquer geografia, e que o levará a subir (e descer) vários degraus no universo do bem servir. E mais não dizemos, para que a refeição seja devidamente apreciada.
Dependência e presunção, fama e esquecimento, pressão e génio, num conto com uma vertente thriller que serve ao leitor um menu de degustação que vale bem uma estrela Michelin. Bom apetite.
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