Águas Santas, a terra fictícia onde se centra a acção de “O Olhar do Açor” (Editorial Presença, 2014), recebeu esse nome devido às milagrosas propriedades curativas da água do seu rio, que valoriza enormemente a propriedade, despertando a cobiça dos homens. Estranhamente, tais virtudes não servem de muito ao dono, o velho e adoentado Gonçalves Vaz, tratado pela mulher com mezinhas preparadas pela curandeira local. Parece haver um desfasamento entre as alegadas virtudes do cenário e o comportamento das personagens, mas podemos desculpá-lo pela importância que a doença deste homem assume na intriga. Estamos no Portugal do século XV e o Rei D. Duarte promulgou a Lei Mental, a qual determinou que os bens doados pela Coroa voltariam para ela se não tivessem um herdeiro varão. A excepção garantida a Águas Santas pode ser revogada a qualquer momento, sendo crucial casar a (oficialmente) filha única de Gonçalves Vaz, de seu nome Leonor, com um nobre capaz de ajudá-la a preservar a herança familiar.
No início da narrativa, Leonor ainda é uma criança pequena. O facto de não ser filha biológica do Senhor de Águas Santas é um segredo revelado ao leitor logo no primeiro capítulo, composto em grande parte por um diálogo entre a sua mãe, Constance, e um visitante, Nuno Garcia. Nascida em Inglaterra, Constance partiu para Portugal como noiva de um homem décadas mais velho, para pagar uma dívida. Pelo caminho, foi raptada por piratas e apaixonou-se por um dos seus salvadores – Diogo, um protegido de Nuno Garcia –, com quem gerou uma criança.
A partir do primeiro capítulo, o foco desloca-se para Leonor, já com a casadoira idade de 16 anos e uma personalidade forte, fruto de uma educação que lhe permitiu, entre outras liberdades, manter como melhor amiga a escrava com quem cresceu, uma jovem de pele escura chamada Guida, herdeira de poderes sobrenaturais. Todavia, a sua felicidade, tal como a de todos aqueles a quem quer bem, é ameaçada pela chegada a Águas Santas do maquiavélico Tomás Rebelo, que além de ser um intriguista com um “magistral talento de corromper a verdade”, revela-se também um bruxo perigoso, disposto a tudo para controlar Águas Santas através de um casamento forçado.
Sendo Sandra Carvalho uma autora ligada à ficção fantástica, entendemos que não faltem aqui feitiços, amuletos e joias com poderes infernais. Ainda assim, sendo a acção situada em Portugal e não num mundo fictício, a concentração de pessoas com dons e objectos especiais chega a parecer exagerada, ao ponto de uma personagem perguntar a si mesma “como era possível que houvesse tanta gente com poderes sobrenaturais a circular em seu redor?”. Por sua vez, o estilo de escrita talvez beneficiasse com uma maior depuração, com menos adjectivos e mais contenção nos epítetos atribuídos às personagens. Por exemplo, percebemos que Tomás Rebelo é um vilão pelos seus actos, sendo dispensável que, em adição aos insultos que as outras figuras lhe dirigem, também a narração repita constantemente que se trata de um facínora, miserável, energúmeno, etc. Apesar destas críticas, a acção é bem doseada, com o final deste primeiro volume da trilogia Crónicas da Terra e do Mar a prometer novas aventuras de Leonor e Guida entre piratas.
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