“Fora as funções religiosas, o tríduo, as novenas, os trabalhos de campo, as ceifas, as vindimas, as fustigações de servos, incestos, incêndios, enforcamentos, invasões de exércitos, saques, estupros, pestes, nós não vimos quase nada. Que coisas pode saber do mundo uma pobre freira?”
A freira que escreve histórias como penitência e narra a acção de “O Cavaleiro Inexistente” (Dom Quixote, 2024), baseando-se (supostamente) em registos antigos, talvez julgue mesmo saber pouco do mundo, mas consegue ver para além das aparências e perceber o vazio por trás das regras que só servem para dispensar o trabalho de pensar. O produto da sua escrita é uma paródia delirante às novelas de cavalaria e às ideias feitas sobre os cavaleiros medievais, protagonizada por um paladino que não existe.
O texto começa com Carlos Magno – um imperador que faz tantas guerras que as confunde – a passar em revista os seus cavaleiros, os quais fervem “como numa panela posta a cozer em fogo lento” dentro das armaduras, ao ponto de ser plausível que alguns tenham adormecido ou desmaiado, e só graças a elas se mantenham em posição nas selas. Entre eles, encontra-se Agilulfo, cuja armadura impecável nada contém. Apesar disso – ou por causa disso –, esta entidade incorpórea é um soldado exemplar: “É assim que se cumpre o dever”, afirma o rei acerca dele, ao sabê-lo movido pela força de vontade e pela fé na causa que serve.
Agilulfo, que tão depressa sente inveja como superioridade face às emoções humanas, começa a dissolver-se sempre que a realidade se torna incerta. Por isso, executa meticulosamente cada tarefa, encaixando às mil maravilhas num meio onde cada palavra e gesto são previsíveis. Para o jovem Rambaldo, que se alista para vingar a morte do pai às mãos de um emir inimigo, Agilulfo é “a presença mais estável” num exército patético, dominado por protocolos absurdos. Ainda assim, quando lhe solicita uma oportunidade de procurar a glória numa qualquer missão grandiosa, vê-se encarregue do controlo das cozinhas do regimento. Como observador, ignorante das regras do jogo, Rambaldo começará a questionar a razão de ser das convenções, ao ponto de acabar por perguntar a si próprio se as suas intenções não serão também rituais que o impedem de desaparecer no nada.
Do conjunto icónico de personagens, também se destaca Gurdulu, ironicamente dado como escudeiro a Agilulfo, porque a maneira como absorve a identidade de tudo quanto vê faz dele “um homem que existe, mas não sabe que existe”. E como não podia faltar uma figura feminina, temos a guerreira Bradamante, que desperta a paixão de Rambaldo, mas só se interessa por Agilulfo, pois “perdeu o desejo por todos os homens existentes, e o único desejo que lhe resta é por um homem que não existe”. Todos eles, de uma ou outra forma, seguem Agilulfo quando este parte para defender o seu título de cavaleiro, ameaçado pela possibilidade de a donzela cuja virgindade em tempos salvou já não ser, à data, virgem.
Por trás da pena da freira está Italo Calvino (1923-1985), cujo anti-militarismo percorre livremente esta recriação da Idade Média que, apesar de improvável, reflecte com brilhantismo a hipocrisia, a escassez de raciocínio crítico e o culto das aparências em toda a sua actualidade.
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