“É como se eu tivesse estado a trepar as paredes de uma torre durante toda a vida. […] O meu corpo paralelo ao chão e, de repente, o mundo vira e eu estou de pé e a torre está deitada no chão. Passa a estar tudo distorcido, mas a minha cabeça está outra vez levantada, estou a andar para a frente. Mas a verdade é que nem sei para onde é que estou a ir.”
O mundo de Jia Jia transforma-se repentinamente no dia em que ela entra na casa de banho e se depara com o corpo inanimado do marido, agachado com a cara para baixo numa banheira meio cheia de água. O impacto emocional desta morte, cujas causas o hospital é incapaz de determinar, não é grande, pois o casamento assentava em alicerces pragmáticos: ele era um homem de negócios bem sucedido, que gostava de exibir a esposa como um adereço gracioso, enquanto ela apreciava a segurança e o conforto que ele lhe proporcionava, mesmo que isso a obrigasse a viver para lhe agradar. O mais perturbador é o desenho que ele deixou sobre uma pilha de toalhas: uma criatura bizarra, com cabeça de homem num corpo de peixe.
“Porco Assado” (Quetzal, 2023) acompanha esta mulher chinesa de 30 e poucos anos nos seus esforços para refazer a vida, ao mesmo tempo que tenta esclarecer o mistério daquele desenho, com as duas demandas a fundirem-se numa procura de sentido para a existência.
Uma parte da narrativa está ancorada ao quotidiano de Pequim e aos constrangimentos da realidade. Após ser repelida pela família do marido – a quem este legou a maior parte da sua riqueza –, Jia Jia depende de uma pensão que não a sustentará por muito tempo, e não sabe se conseguirá retomar a carreira artística – que abandonou porque o marido considerava que parecia mal que ela tentasse vender os seus quadros. Entre um novo relacionamento com um empregado de bar, os problemas familiares e o reatar de relações com o pai – que trocara a mãe por outra mulher –, ela sente a felicidade longe do seu alcance, no lado oposto de um rio profundo que não consegue atravessar. Contudo, a realidade expande-se até a sua fronteira com um mundo paralelo – onírico ou talvez não – se tornar tão fluida como água.
Ao reproduzir o itinerário de uma viagem que o marido fez pelo Tibete, na esperança de desvendar o mistério do homem-peixe, Jia Jia cruza-se com figuras peculiares, como um escritor em busca da esposa desaparecida, ou um idoso de comportamento estranho. Já depois do regresso a Pequim, as suas experiências serão iluminadas por uma fonte inesperada, com implicações tão belas quanto assustadoras, revelando também uma parte da história dos seus próprios pais.
A autora, An Yu, nasceu em Pequim, tal como a sua protagonista, mas estudou e trabalhou no ocidente, residindo agora em Hong Kong. Este seu livro de estreia é pontuado por pormenores da cultura chinesa que podem parecer curiosos aos olhos ocidentais, mas conta uma odisseia de auto-descoberta com ressonância universal. Acima de tudo, destaca-se a beleza delicada da abertura ao surreal e a várias interpretações, que desperta a vontade de ler as obras seguintes.
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