É uma daquelas coisas difíceis – ou talvez nem tanto – de explicar. Como é possível que Ian McEwan, autor de monumentos como “Na Praia de Chesil”, “Amesterdão” ou “Expiação”, capaz de deambular com mordacidade entre o romance, o thriller – “Mel” – ou uma ideia de futurismo – “Máquinas Como Eu” -, nunca tenha levado para casa o prémio dado pelos suecos?
A verdade é que o britânico, agora a caminho dos 76 anos, está em grande forma literária, como se pode constatar em “Lições” (Gradiva, 2023), um dos grandes romances de 2023 com edição nacional. Um livro onde, para além da ideia de liberdade individual – tema que sempre tem atravessado os seus livros -, nos é oferecida uma Lição – isso mesmo, com L maiúsculo – da história humana. Pelo caminho, conta-se a vida de Roland Baines.
“Para Roland Baines, o homem que não podia dormir e que estava sentado na cadeira de baloiço, o despertar da cidade era apenas um som apressado distante, que aumentava a cada minuto que passava.” Esta é a história de alguém que, a certa altura da sua vida, se viu abandonado pela mulher, ficando responsável pela vida de Lawrence, o filho de sete meses. “Acabou por conseguir alguma ajuda do Estado, um subsídio para pais solteiros, uma pensão de viuvez, apesar de ela não estar morta”, imaginando que “o longo desapego, quer ele gostasse ou não, podia ser a essência da paternidade”.
Antes de nos sentarmos ao volante deste DeLorean britânico, McEwan dá-nos um primeiro vislumbre desta criatura abandonada pela sorte, a certa altura paranóica e quase sempre amarga, incapaz de encerrar os mais importantes capítulos da sua vida – ou de escolher o seu inferno de estimação. “O inferno auto-inflingido era um conceito interessante. Ninguém escapava a construir um, pelo menos um, durante a sua vida. Algumas vidas resumiam-se a isso. Era uma tautologia, essa infelicidade auto-inflingida era uma extensão da personalidade. Mas Roland pensava muitas vezes nisso. Uma pessoa construía uma máquina de tortura e metia-se lá dentro. Encaixava-se perfeitamente, com vários tipos de sofrimento à disposição: certos empregos, uma queda para a bebida, para as drogas, crime associado a um dom para se deixar apanhar. Uma religião austera era outra opção”.
No caso de Roland, são duas as mulheres que culpa pela sua infelicidade aguda, um imobilismo inatacável, uma condição sentimental adversa onde caiu como quem por um triz se viu livre de areias movediças – permanecendo, porém, atolado num pântano: “Missi Miriam Cornell, a professora de piano que se metia nos assuntos dele por meios romanescos em tempos e lugares longínquos; Alissa Eberhardt Baines, esposa amada, que o mantinha agrilhoado, lá do sítio onde estava, fosse ele qual fosse”. Mulheres que levaram a que sinta que tudo na sua vida lhe foi imposto pelo acaso, “como se ele tivesse descido de um lugar esquecido para aquelas circunstâncias, para uma vida esvaziada por outra pessoa, onde nada tinha sido escolhido por ele. A casa que nunca tinha querido comprar e que não conseguia pagar. A criança que tinha ao colo, que nunca esperara nem precisara de amar. O trânsito que passava arbitrariamente, demasiado devagar, pelo portão que era agora dele e que nunca arranjaria. A frágil acácia que nunca pensara comprar, o optimismo ao plantá-la que já não conseguia sentir”.
Embarcamos na história de vida de Rowland, desde o momento em que, na Líbia, teve um vislumbre do que poderia ser a felicidade – um momento ténue, que terminou com um regresso forçado à pátria e uma perda irreparável – até aos dias que precedem o fim, com muitas histórias paralelas pelo meio. Como as de Alissa, a mulher-escritora em fuga, ou a da mãe desta, que em Berlim terá passado ao lado do sonho, cidade que visitou para saber mais sobre a Rosa Branca, um movimento de resistência formado durante a Grande Guerra.
Desde os seus 11 anos, Roland passou a acreditar incondicionalmente na bondade do mundo, um pensamento inocente que, mesmo com tantos sinais vermelhos, transportou e alimentou na idade adulta, alvo de reconstantes reformulações e adaptações consoante cada uma das catástrofes vividas de perto ou à distância. Porém, ao mostrar-nos a esperança quase pueril de Roland, McEwan obriga-nos a pensar nas muitas falhas do mundo, nos seus conflitos e intolerâncias.
Ian McEwan vai, pelo caminho, construindo um mapa mental da história humana, desde o lado humano, muitas vezes tapado pela “nuvem que pairava sobre as relações familiares”, ao lado político e social, com referências variadas que incluem, por exemplo, uma menção ao desastre de Chernobyll e às suas consequências, um retrato político do Médio Oriente e do nacionalismo árabe, a colocação dos mísseis em Cuba que quase nos atirou para uma terceira guerra mundial, a queda das ditaduras de Portugal e Espanha, a vida em Berlim antes e depois da queda do muro, os canais da Mancha e do Suez, a guerra das Malvinas, a ascensão de Thatcher ao poder, as alterações climáticas, o retrocesso da liberdade de expressão, as redes sociais a darem lugar a novos tiranos, a inteligência artificial ou, ainda, os cancelamentos e a ideologia do politicamente correcto.
Não falta uma alfinetada ao cristianismo, um retrato da sociedade inglesa ou um pontapé nas canelas do comunismo, num livro que é também sobre os acasos da existência e um lembrete, sem qualquer moralismo ou espírito de propaganda, da segunda guerra mundial e de todos os crimes cometidos, para que as novas gerações não esqueçam o mal que aconteceu à sua volta – e que outras gerações sentiram na pele. Como se lê a dado momento, “o passado, o passado moderno era um peso, um fardo de escombros amontoados, de sofrimento esquecido”.
“Lições” é uma história individual mas, também, é um pouco a história do mundo, muito na sombra do “Coração das Trevas” de Conrad, um legado de McEwan ao mundo que deixa no ar vários alertas, formulando – através de Roland e do seu inalcançável projecto literário – muitas perguntas a que dificilmente encontrará respostas em vida. “Seria possível impedir um aquecimento global catastrófico? Estaria uma guerra sino-americana a ser entretecida no desenho da história? A erupção global do nacionalismo racista cederia a qualquer coisa mais generosa, mais construtiva? Poderíamos inverter a actual grande extinção de espécies? Seria possível a sociedade aberrta encontrar formas novas e mais justas de florescer? Iria a inteligência artificial tornar-nos sábios ou loucos ou irrelevantes? Conseguiríamos chegar ao fim do século sem uma troca de mísseis nucleares?”. Obrigado pela Lição, mestre McEwan.
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