Frederick Douglass (181?-1895) nunca conseguiu apurar a sua data de nascimento, pois foi considerado, desde a nascença, propriedade de um homem que cedo o separou da mãe, e para quem “quaisquer inquirições desse tipo por parte de um escravo eram vistas como impróprias e impertinentes, prova de um espírito inquieto”. Felizmente para Douglass, o espírito inquiridor nunca o abandonou, nem a convicção de que a escravatura não seria capaz de retê-lo “para sempre no seu abraço abominável”, animando-o a lutar para se tornar dono de si próprio. A sua autobiografia, dada ao prelo em 1845, na esperança de “ajudar a trazer à luz a verdade sobre o sistema de escravatura americano” e apressar o seu fim, constitui a parte principal de “Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano e Outros Textos” (Penguin Clássicos, 2023), obra que conta com uma excelente introdução da socióloga Cristina Roldão, que expõe a relevância da sua leitura numa actualidade marcada por desigualdades persistentes.
O facto de Douglass ter nascido numa região dos EUA onde a escravatura assumia “as suas formas ditas mais justas” não reduz a brutalidade física que é de esperar encontrar neste tipo de narrativa. Mais surpreendente será, talvez, a explicitação do empenho dos esclavagistas em tolher a mente dos escravos. A título de exemplo, refira-se que Douglass teve uma dona que começou a ensinar-lhe o abecedário até ter sido proibida pelo marido de fazê-lo. Segundo este homem, além de ilegal, ensinar um escravo a ler era perigoso, pois torná-lo-ia indisciplinável. Para Douglass, ouvir isto foi uma revelação que só reforçou a sua determinação de aprender a ler e a escrever, tendo para isso recorrido a diversos estratagemas.
Outro aspecto interessante, prova da liberdade de espírito do autor, é a forma como, declarando-se cristão, critica a legitimação das autoridades cristãs ao sistema esclavagista, apontando os religiosos como os piores proprietários de escravos que conheceu e denunciando que “no Sul a religião é somente uma capa usada para ocultar os mais horrendos crimes”.
Depois da sua fuga para a liberdade e da transformação numa figura de proa do movimento abolicionista, Douglass também se notabilizou através de discursos e artigos de imprensa. Dos incluídos nesta edição, destacam-se “Ao Meu Antigo Dono”, publicado em 1848, no 10º aniversário da sua emancipação, bem como “Movimento das Sufragistas”, de 1870, onde afirma que as capacidades da mulher não são inferiores às dos homens e defende o seu direito de voto. Contudo, o texto mais acutilante desta secção será talvez o discurso “O Que Significa o 4 de Julho para o Escravo?”, proferido em 1852. Após argumentar que esse dia, no qual se celebra uma independência alcançada em nome da liberdade, recorda mais que qualquer outro ao escravo “a grave injustiça e crueldade de que é vítima constante”, afirma ousadamente que “a existência de escravatura neste país denuncia o vosso republicanismo como farsa, a vossa humanidade como fingimento infame e o vosso cristianismo como mentira”. É assombroso notar como grande parte da sua visão da sociedade americana – e suas contradições – ecoa nos dias de hoje.
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