“A guerra está aqui, muito perto, a arder na esquina do quarteirão; e os habitantes da cave não se aperceberam imediatamente que a guerra mede espaço e tempo de forma diferente da paz. Agora, ao experimentarem este sistema por si próprios, apercebem-se de que a guerra não se resume a entidades abstractas, continentes e nações, mas que ela está aqui, presente, na realidade concreta.”
Ao escrever estas palavras, no verão de 1945, Sándor Márai tinha ainda bem presente na memória o cerco de dezembro de 1944 a Budapeste, capital da sua Hungria natal, perto do fim da Segunda Grande Guerra. O texto intitula-se “Libertação” (Dom Quixote, 2023), pois assim se classificou a passagem da cidade das garras da Alemanha nazi para as da Rússia soviética, mas o uso do termo não é isento de ironia.
A figura que o autor usa para nos conduzir através destes tempos sombrios é uma jovem de 25 anos chamada Erzsébet, cujo percurso tem o valor de um testemunho. Depois de ajudar o pai – um cientista perseguido pelos nazis – a esconder-se, também ela abandonou a casa da família, que desde então foi pilhada e reduzida a ruínas por uma bomba. Quando a conhecemos, já sobrevive há dez meses sem residência fixa, vendendo os bens que guardou, num estado de alerta constante para evitar a captura, pois as denúncias anónimas proliferam e a ameaça russa não demove nazis e húngaros de extrema-direita – conhecidos como cruzes flechadas – de caçarem judeus e opositores políticos até ao último instante.
Num contexto em que “solidariedade, compaixão, todos os sentimentos de humanidade tinham-se desvanecido da alma das pessoas”, Erzsébet atravessa o caos das ruas, onde a morte pode chegar a qualquer momento, em busca de um refúgio mais seguro para o pai, antes de se recolher ela própria para o cerco. Tal como a protagonista, um milhão e meio de pessoas aceitaram esse destino. “Cozinharam em antecipação para o cerco como se estivessem a preparar-se para um passeio em grupo, embalaram as suas bugigangas, os seus objectos de valor, instalaram-se na cave, com astúcia e rapacidade apressaram-se para ocupar os recantos mais confortáveis dos abrigos antiaéreos”.
Da narrativa intensa, como que febril, destaca-se a descrição da vida nas caves dos edifícios durante o cerco. Juntamente com as cerca de 140 pessoas que a acompanham, deitadas em colchões e camas dobráveis ao lado de fogões comuns, sentadas nas bagagens que defendiam com os seus corpos, Erzsébet acabará por se habituar à falta de água e de electricidade, aos cheiros e ao esbatimento da fronteira entre dia e noite. “Há apenas uma unidade de tempo, apenas uma dimensão: o cerco”.
Entre ricos e pobres, colaboracionistas e sobreviventes de campos de concentração, joga-se a condição humana, já com suposições sobre a ordem que os novos amos irão estabelecer. A suposta libertação chegará, mas é questionável que a guerra alguma vez deixe de assombrar os espíritos daqueles que a viveram.
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