São vários os clássicos da banda desenhada que, com o tempo – e o desaparecimento dos seus autores originais -, têm sido alvo de reinterpretações, tanto a nível do desenho como do argumento. No caso de Spirou, contámos com a publicação de “A Fera” (edição portuguesa pela editora A Seita – ler crítica), álbum da dupla Zidrou e Frank Pé, no qual Marsupilami surgia longe de ter aquele ar fofinho e travesso a que nos habituámos durante décadas. Ou, ainda, com a colecção “Uma Aventura de Spirou e Fantásio por…” – a que outros decidiram chamar mais tarde de “O Spirou de…” -, inaugurada em 2006 pela francesa Dupuis – que neste momento conta com cerca de 3 dezenas de títulos -, que tratou de convidar alguns autores para criarem o seu Spirou, não seguindo necessariamente a cronologia oficial. “Os Gigantes Petrificados”, assinado por Yoann e Vehlmann, o primeiro álbum da série, foi publicado em Portugal em 2007 pela Asa e, mais recentemente – e também pela Asa -, fomos brindados com a publicação de “Diário de um Ingénuo”, edição em três volumes assinada por Émile Bravo.
Quanto ao mais estiloso cowboy do oeste, foi alvo de uma homenagem chamada “Lucky Luke visto por…”, na qual desenhadores de hoje se aventuram a recriar as aventuras do cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra – e que, para mal dos seus pecados, foi obrigado a deixar de fumar, contentando-se agora em usar uma palhinha como quem usa um palito depois das refeições. Colecção que, em Portugal, conta com o selo editorial A Seita, já com 5 títulos publicados.
Já Astérix, a criação original de Goscinny (1926-1977) e Uderzo (1927-2020) que nos apresentou ao império romano e aos irredutíveis gauleses, tem optado por não se desviar muito da estética original. Porém, se no que diz respeito ao desenho as variações são mínimas, já em relação ao argumento as transformações têm sido várias, como é notório no mais recente volume – o 40º álbum da coleção -, intitulado “O Lírio Branco” (Asa, 2023), que conta com texto de Fabcaro e desenhos de Didier Conrad.
Os tempos não estão fáceis para os guerreiros romanos do campo de Babácomrum, na Armónica, que se recusam a carregar contra os godos. “Afinal de contas, godos são godos…”, vão dizendo entre motins, deserções e com o moral nas lonas. Quem parece ter a solução para este estado de inércia é Palavreadus, médico-chefe dos exércitos de César: “Para iluminar a floresta, basta a floração de um só lírio…”. Tiradas poética à parte, o plano passa por incutir uma dose cavalar de motivação e de auto-ajuda nas tropas. Como Palavreadus explica ao comandante Taquietus, “vou ensinar os teus homens a pensarem positivo e a prepararem-se para o combate estando em paz consigo próprios!”. Mudança que passa, por exemplo, por trocarem a referência de “aldeia dos loucos” por um mais politicamente correcto “aldeia das pessoas diferentes de ti e de mim devido ao seu comportamento imprevisível”.
A partir do momento em que Palavreadus visita pela primeira vez a aldeia de Astérix e companhia, tudo se começa a transformar aos poucos: o peixe – ainda por cima fresco – começa a substituir o javali às refeições; o exercício físico começa a ser uma prática regular; e até mesmo o desafinado Cacofonix começa a ser visto como um artista diferente, entre afirmações como ter “um estilo ousado” ou de ser “importante permitir que as minorias audíveis se exprimam”. Quem parece não ir na cantiga é Panoramix, que desconfia de tanta quietude e espírito de conversão: “É espantoso como os nossos amigos seguiram tão depressa os conselhos deste viajante…”
“O Lírio Branco” faz, de certa forma, uma homenagem ao álbum “A Zaragata”, só que trocando a discórdia pelo espírito zen. Isto enquanto faz a ponte com os tempos actuais, seja referindo os populismos e os discursos anti-emigração, mostrando as manifestações como um direito, dando uma bicada nos atrasos dos transportes públicos ou, ainda, através da referência a engarrafamentos, trotinetas – aqui designadas por carrinetas -, à nouvelle cuisine ou à arte contemporânea – a referência a Banksix é um verdadeiro mimo. Um álbum que mostra que o legado Astérix continua em boas mãos, oferecendo um final como manda a tradição – um faustoso banquete e o tipo do costume posto de lado – e mostrando que a mudança, provavelmente, não irá lá com mindfulnesses: “Talvez venha a funcional melhor com as gerações vindouras, quem sabe?”.
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