“Bouvard & Pécuchet” (E-Primatur, 2023) foi a última obra-prima de Gustave Flaubert (1821-1880), deixada inacabada mas ainda assim não menos perfeita, pouco deixando a dever a “Madame Bovary” (1857) ou “A Educação Sentimental” (1869), títulos que tiveram tanto de aclamação como de contestação. Acusado de atentar contra a moral, dado o realismo da sua narrativa que ia para além da parte visível do comportamento humano, expondo pensamento e emoção, um verdadeiro behaviorista, Flaubert persistiu com realismo e originalidade à época.
Francês, filho de um cirurgião, começou por estudar direito na Sorbonne, mas sucumbiu à vida boémia e persistiu às tentativas da família para que ignorasse o gosto e o talento literário. Situado no ponto de convergência entre o Romantismo e o Realismo, a sua literatura vive de um espírito de observação acutilante do comportamento social, de análises psicológicas incisivas, bem como de uma visão irónica e desencantada da humanidade.
A novela, agora publicada pela E-Primatur, foi escrita entre 1877 e 1880, e retrata as aventuras de dois homens de meia-idade, ambos funcionários copistas que, após o conhecimento que travam num encontro ocasional, desenvolvem uma amizade e cumplicidade tal que encetam mudanças radicais nas respectivas vidas. A mensagem satírica de Flaubert, coloca os protagonistas em busca do saber universal numa pequena aldeia, longe do bulício urbano de Paris onde até então sempre haviam vivido. Incapazes de perceber e lidar com a desconfiança e a resistência da pequena comunidade local, acabam por abandonar o projecto utópico, não sem antes deixarem de viver uma sucessão de experiências alucinantes. Desenvolvem com arrojo e projectos de inovação na agricultura, jardinagem e pecuária. Incapazes de concretizar os propósitos, passam a dedicar-se a diversas áreas do saber abstracto, sempre a coberto de dois espíritos desassossegados e completamente inconformados. Faltava-lhes a humildade e a capacidade de observarem o contexto, sedentos que estavam de realizar o impossível, em tempo e pelos meios menos convencionais. Passaram a estar expostos ao infortúnio e à falência, mas ainda assim jamais ao amorfismo.
Retira-se, da leitura de “Bouvard & Pécuchet”, o prazer de acompanhar duas personalidades destemidas, fantasiosas, mas atraentes pela ousadia dos seus dias, pelo inconformismo e a persistência. A leitura deste Flaubert não desapontará quem preza o saber pelo saber, quem se deleita com as narrativas sofistas de procura do conhecimento pelo conhecimento, quem gosta de uma boa enciclopédia à cabeceira. A dupla pode ter coleccionado insucessos, mas superou-se na capacidade de coligir informação, deixando ao leitor um compêndio de decisões disparatadas – mas com fundamentos escalpelizados -, fazendo jus ao perfil realista das obras de Flaubert, à sua linguagem não sentimental, a uma profunda arte na análise dos comportamentos colectivos e à critica social e política. Afinal, “Que baixeza pensar sempre no prolongamento da vida. A vida só é boa desde que seja gozada.”
O valor de “Bouvard & Pécuchet” é tal que integra o espólio do Museu Calouste Gulbenkian, numa edição de 1904, exemplar ilustrado com composições de Charles Huard, nº 27 de uma tiragem estrita de 30 exemplares únicos.
Sem Comentários