Estão a ver aquela imagem em que, esvoaçando à volta das nossas orelhas ou pousadas num dos ombros, duas figuras nos vão tentando forçar à sua vontade, normalmente representadas como um anjo delicado e um diabrete atrevido? Pois bem, a termos de escolher entre uma das representações, Tati Bernardi seria sem dúvida o diabrete atrevido, que nos obriga a olhar a vida com o belo e necessário olhar da provocação e da loucura.
Após a publicação de “Depois a Louca Sou Eu” (2017 – ler entrevista), as livrarias nacionais voltaram a festejar as crónicas de Tati com “Homem-Objeto” (2023), onde nos deliciamos com um humor sem meio-termo – ou terno ou furioso, não há concessões. O mesmo que, no passado, fez com que tivesse sido alvo de memes incríveis ou críticas que choveram de todo o lado: feministas (“eu só acredito em feminista que fica de quatro“, escreveu) e machistas (que já a chamaram de “rodada“), defensores do PT e do PSDB (ambos devido ao texto “Como continuar petista?“), realizadores do cinema independente (que a chamaram de dinheirista por um texto em que ironizava quem trabalha de graça) e adeptas do parto humanizado (“eu não quero ver sua xota, gata“, escreveu).
Neste seu segundo livro de crónicas, que na edição portuguesa inclui algumas mais recentes que a edição brasileira, acompanhamos durante uma boa fatia a chegada da maternidade, num processo no qual Tati duvidou vezes sem conta se iria descobrir em si o instinto maternal que todos carregam em ombros: “Eu chorava sem parar porque não conseguia ainda sentir o tal apreço avassalador, o tal deleite maior do mundo e, quando tentava emanar purpurinas aladas, acabava, uma vez que o organismo estava descompensado, apenas peidando ou arrotando. Seria eu escrota, incapaz de amar, pior mãe do planeta, uma pequena sociopata?”. Um processo ao qual se associaram sacrifícios vários, como nunca mais ter “encostado” num ansiolítico ou, a certo ponto, ter passado de somar “parceiros e desencantos” a contar “óvulos e metros quadrados”.
Para além da maternidade, são muitos os assuntos com que Tati Bernardi brinda os seus leitores: a mania de as mulheres olharem para os homens, os seus e os das outras, como “tadinhos”; a designação do shopping como “um lugar muito triste, mas nós também somos”; apontar o acto de telefonar a alguém como “falta de educação”; desenvolver algumas estratégias para lidar com tios indelicados – quem não tem um nos seus jantares de família?; uma ode ao “deodorante”, mostrando que “feder, mesmo para quem tem a vida ganha, é a mais escandalosa e vexatória derrota”; o pouco à-vontade na cultura avant-garde ou modernista – “Acho que sou ignorante demais para entender a avó da arte performática”, isto sobre Marina Abramovic; uma enorme definição do que é o casamento, que começa com um “casamento não é hotel, rapazes. Não é spa nem férias”; uma dissertação sobre o algoritmo sexual se fossem as mulheres a mandar – “Se o Xvídeos levasse a sério o gosto feminino, as opções «macho esfinge», «menino triste» e «senhor impenetrável» estariam pau a pau com as asiáticas, as MILFs e as amadoras do anal”; ou um manguito ao politicamente correcto, suspirando que “viver está tão chato que até pra jogar conversa fora daqui a pouco vai ter gente separando lixo”.
Há, porém, para lá de todo o humor abrasivo e loucura a rodos, um lado terno e emocional, muitas vezes sacado a grandes profundidades, como quando, num texto sobre a liberdade do corpo, o pressentimento de uma solidão profunda, a incompreensão do mundo ou a descoberta do medo, escreve assim: “No meio do caminho vi um corredor, um quarto escuro, e pensei que seria mesmo muito estranho ficar deitada no chão daquele quarto, no breu completo, enquanto todos cantavam na sala. E fiz isso para me punir. Começou com uma alergia ao carpete, um chorinho baixo e de repente afluiu um tsunami aquoso de dentro da minha cabeça. Eu berrava «mãe» com a mesma violência surda com que os outros batiam palmas. E aquele medo, aquele exato medo, é uma coisa que nunca mais parei de sentir”. Um livro de crónicas que se tomam como vitaminas. Ou ansiolíticos.
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