Era uma vez… um casal cujo amor era tão absoluto que, dispensando tudo o mais que existia, construiu um domínio exclusivo de beleza e plenitude num país chamado Nós. Porém, ao fim de 20 anos do “casamento mais encantador do universo”, livre de angústias, infidelidades ou discussões, o homem, Marcelo, morre, deixando destroçada a esposa, Irene, ao ponto desta questionar a legitimidade de “continuar a ter ambições terrenas, como o direito à alegria, ao prazer, ao futuro”.
Marcelo, filho de um espanhol que se refugiou em Itália durante a Guerra Civil e casou com uma italiana, herdou do pai duas paixões: “o cinema de Federico Fellini e o amor como a única verdade do mundo”. A sua presença afastava o desânimo e a maldade, libertando Irene de todos os medos e de toda a vaidade humana. Ao seu lado, ela “não precisava de ser alguém para os outros: não precisava de triunfar, não precisava de qualquer tipo de êxito social ou profissional”. Agora, aos 50 anos, sem filhos, amigos ou parentes chegados, o mundo dela torna-se “uma catadupa de milhões de perguntas hostis”. Por isso, Irene decide empreender um périplo em memória de todas as viagens que fizeram juntos, usando o dinheiro herdado para se rodear de um luxo que é, ao mesmo tempo, prazer e protecção contra uma banalidade que lhe é odiosa.
Apesar da solidão, Irene persevera no amor, procurando ver a mão do falecido marido nos acontecimentos, de modo a poder atribuir-lhes uma causalidade que dê sentido à sua realidade. Aos seus olhos, as companhias que atrai nos hotéis por onde passa são “somente corpos escolhidos por Marce para voltar à vida”, e os orgasmos que lhe proporcionam constituem apenas uma via para sentir ”a sombra furiosa da liberdade no seu corpo a vaguear no espaço sideral e cósmico à procura dele, daquele que está entre os mortos, mas não está morto”. Se a vida que teve com ele era mágica, por que não acreditar no prodígio da transubstanciação, operado pelo poder do amor constante e imortal?
Em “Nós” (Alfaguara, 2023), obra distinguida com o Prémio Nadal de Romance 2023, Manuel Vilas mergulha no mundo interior desta mulher para, entre desejos e obsessões, colocar a sua prosa avassaladoramente poética ao serviço de uma reflexão sobre a profundidade da solidão, os paroxismos do amor e – em última análise – o sentido da vida. Entre a descrição dos esforços da protagonista para manter vivo um conto de fadas, o autor introduz indícios de que algo sombrio se aninha dentro dela, além de interrogações acerca da veracidade das suas recordações. Afinal, se “uma das virtudes do amor profundo é que só tem presente”, qual o valor das visões do passado? Será Irene realmente movida pelo amor a Marcelo, ou por uma idealização do amor, que não é mais do que amor a si própria? Se “os mortos não sabem que estão mortos”, conhecerão os iludidos a sua condição?
Do paradoxo da entrega à loucura para não enlouquecer numa normalidade sem grandeza, destaca-se, mais uma vez, a tendência humana para a auto-reinvenção através da ficção.
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