Assinado por Olga Tokarczuk, autora que levou para casa o Nobel da Literatura no ano de 2019, “Histórias Bizarras” (Cavalo de Ferro, 2022) lê-se como uma enciclopédia não ilustrada de pequenos contos, atravessados pela inquietação, o grotesco e o humor negro – e, claro, o apelo do fantástico. Uma boa forma de conhecer, de vários ângulos, a escrita de uma autora que parece ter, como o colocaram os júris do Nobel, descoberto “o cruzamento de fronteiras como forma de vida”.
“O Passageiro” faz regressar os medos infantis, recordando que “há coisas piores do que a morte, do que vampiros que sugam o sangue, do que lobisomens que tudo desfazem em frangalhos”.
Passado em 1656, “As Crianças Verdes” é narrado pelo médico pessoal do Rei Jan Kazimierz, que havia desenvolvido um interesse quase obsessivo pela plica polonica, “uma estranha criação feita com cabelo denso e torcido sob várias formas” – que muitos acreditavam funcionar como um amuleto, capaz de concentrar tanto o bem como o mal. Ao afastar-se do bulício da cidade, para além de sentir “um medo pegajoso, silencioso, que nos confundia a mente e nos encaminhava rumo aos fetos, para o pântano sem fundo”, William Davisson irá perceber, quem sabe tarde demais, que “as periferias do mundo nos marcam para sempre com uma impotência misteriosa”. Um dos mais crípticos e fantasiosos contos deste volume, bem ao estilo de um episódio da Quinta Dimensão.
“Conservas” é dominado por um menino da mamã na casa dos cinquenta, que decide oferecer um funeral digno à sua mãe – que, no lugar de dinheiro, títulos ou acções, lhe deixou como legado frascos e frascos de consercas gourmet. Um conto onde quem rirá por último serão “aquelas idosas desengonçadas com boinas fantasiosas”.
“Costuras” põe o leitor a abrir uma gaveta, onde descobre peúgas que tinham “todas elas uma costura que ia desde os dedos dos pés até ao cós”, uma série de canetas que apenas escrevem a castanho e selos todos redondos. Um tocante conto sobre a perda, a solidão e a aceleração do tempo.
“A Visita” é um conto para os dias de hoje, que segue uma família gerida por estranhos princípios e alimentada a visitas de vizinhança, no qual se descobre uma nova saída profissional: “Sempre fui mentirosa, e agora faço disto uma profissão”.
“Uma História Verdadeira” mostra-nos um altruísmo que dá para o torto, num conto sobre a construção da identidade, a habilidade do disfarce e a ânsia de poder.
Um dos mais crípticos contos desta colectânea é “Cooração”, onde o Sr. M, alguém cansado e muito doente, sobreve “graças à enorme força protectora da sua esposa”. Ainda assim, vê-se na necessidade de um transplante de risco elevado.
Suicídio e eutanásia, ou um triângulo confrontacional entre homem-máquina-animal, estão no centro de “Transfugium”, um conto completamente marado sobre as emoções que deixa um sábio conselho: fuja delas sempre que possa.
“A Montanha de Todos-os-Santos” move-se entre a clonagem e uma rebuscada ideia de santidade, tendo como protagonista, num cenário religioso a roçar o culto, a autora do Teste das Tendências do Desenvolvimento, ca+az de “prever com grande precisão quem uma pessoa se tornaria e que direcção tomaria o seu desenvolvimento”.
A fechar esta colectânea temos “Calendário dos Feriados Humanos”, no qual somos apresentados a Ilon Massagista, um mestre que conhece como ninguém o corpo de Monokidos, bem como o lugar das suas cicatrizes e as fases de cicatrização, num trabalho familiar e hereditário que, no seu caso particular, decorre há já vinte e quatro anos. O seu arrependimento, ainda assim, é o de ter concebido uma filha, pois sente que “provavelmente nada de bom a esperava na vida”. Chegado ao final deste conto – e deste volume -, muito provavelmente o leitor sentirá o mesmo que Illon Massagista ao entrar nos pátios das Clínicas: “A escuridão descia com rapidez e, desta vez, parecia descer irreversivelmente”. Bom e bizarro.
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