Na introdução a “Miss Bengalore” (ler crítica), o álbum de banda desenhada que abria a tetralogia O Castelo dos Animais, Xavier Dorison prestava o devido tributo a “O Triunfo dos Porcos”. Sobre este livro maior de George Orwell, Dorison destacava ter capturado “o processo de confiscação dos ideais democráticos por ditadores sanguinários”, tragédia presente em todas as ditaduras, sejam elas as do passado, do presente ou de um tempo ainda está por cumprir. Ainda assim, Dorison referia que Orwell não teria compreendido tudo ou, pelo menos, que não teria conseguido olhar além do negrume, dando exemplos de geografias diversas onde se haviam abatido ditaduras.
A história tem lugar num castelo que, depois de ter sido abandonado pelos homens, foi transformado em quinta pelos animais que, entregues a si próprios, fundaram uma república destinada a perpetuar a liberdade recém-adquirida. Aos poucos, porém, a ditadura foi-se instalando, num regime liderado pelo presidente Júlio, um touro enorme que vai mexendo os cordelinhos quase sempre dos bastidores e que, através da permanente ameaça de lobos famintos, instalou o medo e a dependência, aniquilando quase por completo toda a ideia de revolta ou do questionamento da autoridade. Para manter a ordem e a população em sentido conta com uma milícia de cães cruéis, que tratam de afastar pela força qualquer discórdia que ameace abalar o regime.
“A Noite dos Justos” (Arte de Autor, 2022), o terceiro volume da série, segue no comprimento de onda da “Desobediência Civil” de Thoreau, com os animais a ganharem terreno com vista à implementação de um regime mais democrático, colocando a governação de Sílvio em xeque.
Pelo caminho, é-nos oferecido um vislumbre do passado de Sílvio, numa altura em que as coisas eram dominadas pelo Presidente Nelson e a sua milícia. Sílvio que explica, de forma sucinta ao seu novo nº 1, o porquê da (sua) ditadura: “Tal como eu, conheces os animais… são demasiado estúpidos e sobretudo demasiado fracos para se governarem sozinhos. Por isso, é preciso que bravos como eu e o meu nº 1 tomem as «decisões difíceis» por eles…”.
Miss B, a gata para que todos olham como o rosto da revolução e a futura líder, tenta pôr água na fervura, explicando por que razões não estão ainda prontos para o confronto: “Enquanto a nossa raiva for mais forte do que nós, não seremos melhores que o Sílvio…”. Nesse confronto interior, Miss B contará com a ajuda do sábio Azéla que, como um Yoda de óculos, lhe deixa um daqueles mantras para serem exibidos em T-shirts: “Apenas os que nada tentam é que não se enganam”. Para ele, a primeira fase da revolta está concluída: a perda do medo. Mas é preciso avançar, e o plano está traçado: “Acabe com o medo, repare a justiça… e peça a opinião aos animais!”
Enquanto vê a sua vida tomada pela revolução, Miss B vai sentindo dificuldades em manter a coesão familiar, mesmo contando com a ajuda de César que, apesar do esmerado babysitting, não quer ser acusado de ser um tipo sentimental. O final, à boca das urnas, levanta o véu para “O Sangue do Rei”, o derradeiro volume desta grande série de BD que dá visibilidade à injustiça, e que aponta o medo como o sentimento dominante das ditaduras.
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