Em tempos onde a literatura anda a ser engomada, esfregada e enfeitada para não passar vergonha em festas para gente bem-comportada e de semblante muito sério, dar de caras com livros como “Boy Parts: Partes Masculinas” (Euforia, 2023) é um bom motivo para fazer a festa.
Romance de estreia de Eliza Clark, “Boy Parts” apresenta-nos à disfuncional Irina, que tem por hábito descobrir homens não particularmente atraentes e convidá-los a ir a sua casa, para sessões fotográficas muito explícitas e em posições quase sempre comprometedoras, que quase sempre acabam expostas numa galeria ou museu. “Fotografo muitos homens que as outras pessoas acham feios ou que têm um ar estranho. Mas tento sempre encontrar um traseiro de tamanho proporcional – caso contrário, fico triste”.
No decorrer de uma licença sabática, imposta depois de ter sido agredida por um cliente no bar manhoso onde vai sacando uns trocos – e descobrindo, de quando em quando, um ou outro potencial modelo -, é convidada a expor numa galeria da moda em Londres, o que levará a revisitar um passado guardado em caixas e a refrear, por instantes, uma rotina feita de cinema hardcore, drogas e álcool.
A sua melhor amiga dá pelo nome de Flo, que tem a certeza de que Irina sofre de Transtorno de Personalidade Borderline, e que vai publicando todos os avanços e recuos desta relação algo esquizofrénica em posts abertos no Instagram, que gritam por atenção: “Acho mesmo que ela tem TPB por diagnosticar e não tem amigos verdadeiros, ela é tipo INCAPAZ de ter relações saudáveis e precisa mesmo da minha ajuda!?? Ontem fui-lhe às compras quando estávamos juntas porque, se eu não fosse, viveria só a água e salada. Isto não é um problema da Rini, é um problema meu, mas agradeço que estejam todos preocupados comigo e que me ouçam a desabafar”.
Eliza Clarke explora, sempre com um balde de gasolina numa mão e um fósforo aceso na outra, a sexualidade nos dias de hoje, interrogando-se – e ao leitor – sobre a toxicidade das relações, o poder sobre o corpo, os traumas físicos, a prisão da memória, o peso da solidão, a fronteira do consentimento ou a perda da empatia. “A transição de ser magoada para magoar foi natural”, diz-nos a certa altura Irina, enquanto vai tirando do corpo imaginários fragmentos de vidro. Se se cruzasse com Irina, muito provavelmente Patrick Bateman fugiria a sete pés. Um dos mais estranhos e singulares livros que chegaram às livrarias nacionais em 2023.
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