A 1 de Outubro de 1928, o Governador de Lisboa emitiu um decreto proibindo que se andasse descalço na cidade. Passava a ser obrigatório, por lei, usar sapatos. Era uma forma de ocultar a pobreza e indigência de grande parte dos lisboetas. Imagine-se então nesse ano longínquo, nesta Lisboa desvalida. Porém, há algo de diferente. A cidade não parece de acordo com o que mostram os livros de história. Estamos numa metrópole ultra-cosmopolita e vanguardista, capital de um império, sobre cujos céus luminosos deslizam enormes dirigíveis — uma Lisboa alternativa, vestida com o preto e branco de Sin City, morada de detectives sarcásticos, vilões sinistros, jornalistas afoitas e amargurados super-heróis.
É este o universo de “Lisboa Noir” (Saída de Emergência, 2023). O autor do livro, Luís Corte Real, engendra um desfecho diferente para a sangrenta guerra civil de 1822, que opôs liberais e absolutistas numa luta pelo trono de Portugal. E se, em vez do seu irmão, D. Pedro, tivesse sido D. Miguel a sair vitorioso? Com base nessa premissa, a narrativa desenrola-se precisamente em 1928, mais de um século volvido sobre a vitória, e o homem que ocupa agora o trono é D. Miguel III, uma figura tenebrosa e envolta em mistério.
O livro é uma colectânea de contos atravessada por um arco narrativo comum. Corte Real, também autor de dois volumes centrados nas aventuras de Benjamim Tormenta, tece com maestria e mão segura a mistura de camadas e referências que enformam este mundo. Há ambientes decalcados do cinema noir dos anos 40; personagens saídos da fauna da literatura pulp à la Raymond Chandler e Dashiell Hammett; outros importados da chamada «era dourada» dos comics americanos; uns laivos da fantasia do cineasta e escritor Guillermo Del Toro, e até uma pitada da “Guerra dos Tronos”, na figura do anão detective Ulisses Garcia, espécie de Tyrion Lannister – se este houvesse nascido na Mouraria.
A própria cidade surge como personagem, retratada como uma Nova Iorque lusitana, onde a arquitectura pombalina se cruza com a frieza dos arranha-céus espampanantes. A cartografia desta Lisboa divide-a em duas metades antagónicas, deitadas em cada margem do Tejo: a norte, levanta-se uma urbe moderna e cintilante, povoada pela aristocracia, enquanto a sul se estende uma formigante favela com a alcunha de «Lismá» (como oposto de «Lisboa»), onde encontramos uma Chinatown, filipinos, macaenses, refugiados russos, emigrantes brasileiros e todo um mundo em constante rebuliço.
Há dois contos escritos pela pena de autores convidados, um da autoria da portuguesa Sónia Louro e outro do brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro. São interessantes variações de estilo, abordagens pessoais ao universo criado por Luís Corte Real, que só trazem ao livro mais valor. Nota positiva também para o grafismo cuidado e para a qualidade das ilustrações que permeiam as páginas.
“Lisboa Noir” é uma leitura prazerosa: dá gosto acompanhar as aventuras de personagens como o diminuto Ulisses, a corajosa jornalista Lana Bronze, espécie de cruzamento entre Lois Lane e Sandra Felgueiras, e o brioso Sem Pavor, justiceiro mascarado que impõe a ordem na noite lisboeta, entre muitos outros. Não faltam motivos de interesse nesta narrativa empolgante, espécie de porta de entrada para um universo que pede expansão, já que a última página deixa uma grande quantidade de perguntas e mistérios por esclarecer.
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