A aldeia de Tapera do Paraguaçu, onde Itamar Vieira Júnior situa a acção do seu mais recente livro, “Salvar o Fogo” (Dom Quixote, 2023), é fictícia mas pode ser encontrada em vários recantos do mundo, quando o poder de uma classe dominante se mantém através da condenação à penúria dos dominados, despojados até das suas memórias e saberes ancestrais. Porém, mesmo nestas condições, há quem preserve em si uma centelha preciosa, capaz de inflamar a alma e avivar o desejo de justiça.
Em Tapera do Paraguaçu, conhecemos o pequeno Moisés, o seu pai viúvo e uma irmã mais velha, Luzia, que ficou a cuidar dos dois enquanto os outros irmãos partiam em busca de uma vida melhor. A comunidade a que pertencem tem origens afro-indígenas e vive à beira da miséria, praticando uma agricultura de subsistência – complementada pela recolha de marisco do rio Paraguaçu – em terras que os monges de um mosteiro edificado no século XVII consideram suas e pelas quais cobram um imposto, ao mesmo tempo que controlam o acesso à educação e ditam as regras da vida na região.
Moisés tem a oportunidade de estudar na escola da Igreja – criando gosto por leituras e descobertas – graças a Luzia, uma personagem memorável que marca todo este romance, do início ao fim. Detentora de uma sensibilidade especial que aprendeu a esconder, deformada pela corcunda que lhe cresceu nas costas, e julgada sem compaixão por eventos que ninguém soube explicar, sofre a hostilidade de uma populaça que lhe atribui poderes sobrenaturais, mas encontra alguma protecção no desempenho da função de “lavadeira dos padres”, que também lhe permite interceder para que Moisés receba uma educação capaz de lhe abrir portas para um futuro melhor. Porém, este sofre uma experiência traumática com o abade, e a descrença da irmã na sua palavra, aliada ao mal-estar com um pai que nunca aprovou os seus estudos, levam-no a fugir para a cidade. Só se reencontrarão muitos anos depois, quando uma tragédia reúne parte dos familiares dispersos, em circunstâncias que propiciam reconciliações e a revelação de segredos. Por essa altura, na Tapera, a Igreja perdeu poder, mas outras forças estão prontas para triunfar em batalhas desiguais contra os despossuídos.
Recorrendo a personagens entre o sofrimento e a redenção, que surpreendem pela sua capacidade de compreensão do mundo, Itamar Vieira Júnior – vencedor do Prémio Leya 2018 com outro romance, “Torto Arado”–- aborda aqui temas como a destruição colonialista das culturas nativas, o racismo, as desigualdades sócio-económicas e as várias camadas da violência exercida sobre mulheres e crianças numa sociedade patriarcal. A narrativa é estruturada a partir de três vozes, correspondentes a diferentes componentes da saga familiar: primeiro Moisés, em seguida Luzia, e depois uma outra irmã, Mariinha, cujas memórias, além de ajudarem a clarificar o estigma que caiu sobre Luzia, acrescentam à história a perspectiva dos trabalhadores agrícolas sem terra própria, à deriva num mundo “imenso e dividido entre pouca gente”. Mas é com Luzia que o texto termina, deixando-nos com a sua transformação numa mulher disposta a enfrentar o mundo, assumindo o fogo “que é vida e a habita desde sempre”.
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