Embalados pelas ondas sonoras, poderíamos bem estar numa qualquer livraria hipster de Nova Iorque. A nosso lado, um americano a residir actualmente em San Sebastian dizia estar a semanas de obter o visto para assentar em terras lusas. Nas filas de trás, um grupo de jovens americanas ia pondo a conversa em dia. A cidade era, afinal, Lisboa, o lugar a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), sede de mais um encontro literário com autores norte-americanos.
O convidado era, nessa tarde de 31 de Outubro, de peso: Bret Easton Ellis. No recente “Estilhaços” (Asa, 2023), o autor regressou a 1981 e aos tempos em que escreveu “Menos Que Zero”, então incapaz de se atirar a um romance de grande fôlego. “Aos 18 anos não conseguiria escrever “Estilhaços”. Apenas aos 56 o livro se começou a desenhar para mim. Os amigos e os amantes reapareceram do nada. Mas tudo o que tinha preparado aos 18 está neste livro. Tinha as personagens e a história que não consegui escrever, e que acabou por dar lugar ao minimalismo de «Menos Que Zero»”.
Foi com toques de humor, algum sarcasmo e muita pose que o escritor norte-americano navegou pela conversa com Isabel Lucas, com vários momentos a fazer lembrar uma ida ao sofá da terapeuta. Falou de cada livro como um reflexo do seu momento actual, regressando ao livro que fez dele o bad guy da literatura “Não sou o mesmo que escreveu “Psicopata Americano”. Estive obcecado com Patrick Bateman. Hoje em dia não escreveria esse livro”.
A voz de “Estilhaços” é a do Bret actual, um Bret que diz ter sido “mais compassivo com estas pessoas, com mais emoção, e não com a frieza de «Menos Que Zero»”, apesar de ser difícil descobrir sinais de qualquer tipo de empatia. Um livro no qual salta à vista a ideia de privilégio, num mundo com poucas ou nenhumas variações cromáticas e no qual Ellis se mostra deslocado. “Quanto mais velho fiquei mais admirei o privilégio em que cresci. Sempre o critiquei, as falhas. Era um actor, usava uma máscara. Também me irritava que os meus amigos heterossexuais tivessem um campo mais aberto. O meu mundo era muito limitado por ser gay. Isso irritava-me. Não achava que ser gay fosse a minha identidade”.
O sexo é, aliás, uma presença constante, um sexo que não encontra espaço para o romantismo. Bret rejeita, porém, a ideia de este ser um livro sobre o sexo, achando que este se tornou um tabu nos dias actuais: “Não creio que seja um livro sobre sexo. É sobre ser um jovem de 17 anos. Escrevi-o da forma mais honesta possível. Como ficaram as pessoas tão pudicas?”.
À boleia dos cultos e dos serial killers, há uma componente de thriller, mas “Estilhaços” não deverá, segundo Ellis, ser lido como um policial. “Há pistas suficientes para Bret pensar que Mallory é o Arrastão. Mas se o virem como um policial vão ficar desiludidos. É sobre um grupo de amigos em 1981. Um livro sobre obsessões: ser escritor, a juventude, a frustração, sair de um mundo ao qual sentimos não pertencer e do qual queremos sair. Um pouco como o mundo de Patrick Bateman”. Sempre Bateman.
“O que interessa é a voz, mais do que a trama. Aprendi isso com Hemingway. Quando li Hemingway tudo mudou. O mesmo aconteceu com Joan Didion. Não era a trama ou as personagens o principal da história, era a forma como esta era contada. A estrutura de “«Menos Que Zero» foi roubada a um ensaio de Joan Didion”. Uma forma que, tanto em “Menos Que Zero” como em “Estilhaços”, tem tudo a ver com o entorpecimento e o alheamento, seja ele sentimental, emocional ou político, num mundo onde são as boas aparências que contam.
Falou-se ainda das obras de arte cinéfilas que chegavam todas as semanas – Taxi Driver, Alien, The Shinning -, às salas de cinema, do tempo de espera sem telemóveis antes das luzes se apagarem, da Barbie ser “o meu favorito deste ano, melhor que Oppenheimer”, de tudo estar sempre a mudar, como o cantou Bob Dylan. Ou sobre o #metoo, movimento a que Bret parece não dar importância – mesmo que o leitor possa achar que deveria, tendo em conta o que nos é contado em “Estilhaços”. Um tema que Ellis varre num breve parágrafo: “Não foi o meu trauma, isso foi crescer. Foi consentido, era o mundo dos adultos. Tinha uma colega que dizia ter preferido um broche a dois meses de audições”. Fala de uma época em que não existiam canais Disney ou do descuido parental, algo que não considera ter pesado no seu crescimento. “Queríamos sexo, carreiras, festas. Crescemos muito depressa”.
“Estilhaços” tem todo o ar de um exercício de catarse, uma introspecção literária onde Ellis regressa a um momento fundador que, tal como um fantasma, não consegue deixar para trás. Qualquer coisa como “Um Menos Que Zero” em edição revista e aumentada, que se lê como a sua obra definitiva. “Precisava de o tirar do sistema. Precisava de paz em relação a muitas coisas. Como todos os meus livros, irá ajudar-me a continuar”. Têm a palavra os fantasmas de 1981.
Fotos: Inês Correia de Matos
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O conceituado crítico e ensaísta Louis Menand é o próximo convidado do Meet the Author – Encontros com Escritores Americanos. A sessão decorrerá no próximo dia 16 de Novembro, pelas 18h30, na FLAD (Lisboa). Vencedor de um prémio Pulitzer, Louis Menand traz a Lisboa o seu livro mais recente, “O Mundo Livre – Arte e Pensamento na Guerra Fria” (Elsinore, 2023).
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