Dulce Garcia nasceu em 1970, no ano em que os Beatles terminaram e que viu nascer, para mal de muitos Natais futuros, a menina Mariah Carrey. Escreveu em tempos que, a partir do momento em que assentou os dois pés numa biblioteca, a sua vida mudou. Tornou-se uma leitora compulsiva, muito por culpa da colecção “Dois Mundos”, que apresentou a boa e a má gente como Hemingway, Tolstoi ou Camus. Foi jornalista entre 1991 e 2017, colaborando em publicações como o Diário Económico, a Máxima, a GQ ou a Sábado, revista de que foi fundadora e sub-directora. No universo literário, foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta e, por estes dias, paga as contas trabalhando como assessora de imprensa na área da política.
Na ficção, estreou-se em 2017 com “Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum”, uma edição da Guerra & Paz. Já em 2022, chegou às livrarias este “Olho da Rua” (Companhia das Letras, 2022), muito provavelmente o romance mais sem-vergonha escrito em português nesse ano.
“Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum” parece ter sido um tubo de ensaio para este “Olho da Rua”. O livro começava de forma algo contida mas, perto da recta final, havia já um humor desenfreado, uma ironia cáustica e um olhar muito apurado sobre as relações amorosas, que o leitor irá reconhecer, de forma expandida, neste “Olho da Rua”.
Um dos grandes triunfos deste romance é a forma descomplexada em como se fala de sexo e desejo, dando expressão à voz interior de cada um. Num mapa literário nacional onde escrever sobre sexo e desejo é quase um tabu – ou, então, muito mal escrito -, Dulce Garcia reclamou o lado físico que manda com o pudor às urtigas, arriscando uma distinção muito clara entre o amor e o sexo.
O livro parte de uma apropriação cultural, sacada ao mercado laboral japonês. Estamos em Lisboa, numa agência de publicidade, onde seis funcionários terão de decidir, entre si, qual deles será despedido. Uma situação que nos é apresentada, logo de entrada, pela mais eruptiva das personagens: “Nessa tarde soube que fazia parte de um lote de funcionários a dispensar da agência de publicidade onde trabalho. Melhor dizendo, somos seis funcionários e um de entre nós vai ser despedido, seremos nós a decidir qual. Acreditam nisto? Eu também não acreditei, mas parece que é verdade – veio cá a directora de recursos humanos explicar que esta estratégia tem sido utilizada com sucesso no Japão. Está bem, abelha. Como se os japoneses, com aqueles roupões esvoaçantes, tivessem parecença alguma com os tugas, máquinas de drenar sangue fervente”. Japão que, de forma sub-reptícia, vai marcando presença ao longo de todo o romance, seja através do whisky ou do sushi.
Relativamente às personagens, cada uma delas foi baptizada a partir de um nome de animal (excepto uma delas): Abelha, Mosca da Fruta, Cisne Negro, Barata, Hiena, Coruja, Polvo, Cavalo de Tróia, havendo mesmo uma entrada enciclopédica para cada uma delas, como que transformando este romance numa fábula laboral para graúdos.
Através deste conjunto de vozes compõe-se um retrato mordaz da sociedade moderna, não faltando alguns reparos e ideias feitas – ou desfeitas – pelo caminho: “Temos de nos desenrascar e o Estado ainda é um bom patrão”; “A família é uma coisa lixada. E pode sempre piorar”; “Ser rico dá um conforto do caraças”; “As magras safam-se sempre”; “Não sou racista, mas…”. Isto sem esquecer as bicadas ao vegetarianismo, os crimes passionais, a moda, a depressão, a tendência para o suicídio, a matança do porco ou a mania de se estar sempre a ir ao Google pesquisar todo o tipo de coisas.
É também um livro que olha de lado para Portugal, desde os lesados no BES à impunidade dos ricos, dos retornados às malhas da justiça, referindo ainda “um grupo indistinto a que se deu o nome de classe média quando se acreditou que este país ia a algum lado”.
Não sendo um livro feminista, “Olho da Rua” acaba por reclamar, pelo menos, o direito ao corpo, sem colocar bibelôs na prateleira. Ou, ainda, mexendo com ideias feitas de um só sentido. Como nesta tirada em relação à gravidez: “É triste estar grávida. Não posso confessar a muita gente, mas é um processo que me incomoda, que quase me repugna. O corpo incha, as pernas transforma-se em troncos retalhados por varizes, as mãos e os pés assemelham-se a patas de elefante”.
“Quanto a mim, estou a escrever um segundo livro, sobre uma mulher que sofre de depressão e que um dia acorda em forma de abóbora-menina. É uma espécie de Metamorfose versão vegan, porque deixei de comer carne e posso assegurar-vos que o meu humor melhorou bastante”, lê-se a certa altura. Será este o próximo romance de Dulce Garcia?
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