Quase um ano depois de ter publicado, em conjunto com Filomena Oliveira, uma biografia de José Saramago, Miguel Real, autor multipremiado cuja obra abrange ensaio e ficção, reconfigura essa informação na forma de um romance, intitulado “O Último Minuto na Vida de Saramago” (Companhia das Letras, 2023), onde reconstitui como poderão ter sido os derradeiros momentos do primeiro – e, até hoje, único – português distinguido com o Prémio Nobel da Literatura.
Aos 87 anos, quase 88, o corpo de Saramago jaz na cama, envolto no “túnel de forro preto” da morte, mas a mente permanece activa, apesar da sonolência induzida pela morfina que lhe aplaca as dores do cancro. É o fluxo da sua consciência que acompanhamos, em discurso directo, numa escrita tão torrencial quanto o pensamento – semelhante à do próprio Saramago –, atravessando sem interrupção as secções do texto, cada uma correspondente a um intervalo de dez segundos, em contagem decrescente, até ao instante zero.
Perante a iminência da morte, a linearidade cronológica dissolve-se nas ondas da memória, que oscilam ao sabor das divagações de um espírito inquieto. Recordações de infância entrelaçam-se com as de uma juventude solitária de “operário esmagado pelo trabalho”, que encontrava libertação na leitura e ia ganhando consciência política. São evocadas as vicissitudes dos tempos, o ânimo autodidacta, as dificuldades económicas, as personalidades que o marcaram e as experiências no mundo da literatura, desde o assombro causado pela descoberta da poesia de Ricardo Reis, passando pelo renascimento que a escrita lhe proporcionou durante o período em que se viu despedido do Diário de Notícias, já com mais de 50 anos, até à conquista de um lugar no meio literário, num percurso que se cruza repetidamente com a história recente de Portugal.
Além do passado, também o imaginário se funde com o presente. No quarto onde agoniza, é visitado por uma série de familiares, incluindo os pais, os avós camponeses e até um bisavô mouro que nunca conheceu, mas também por algumas das personagens mais marcantes do seu universo literário. Várias figuras femininas, sobretudo Blimunda, são associadas a Pilar, a companheira com quem foi mais feliz e a quem dedica o seu último pensamento.
Saramago parte para “o mundo da história e da memória”, ciente de ter subvertido o campo da estética literária e sentindo que fez “o que compete a um mortal fazer na vida, sugá-la até ao tutano e, no final, legar uma obra que faça justiça ao sonho dos homens, pregando a igualdade e a solidariedade”. Por vezes, surge um toque de mágoa face à não concretização dos seus ideais (“nos primeiros cinquenta anos de vida augurei um futuro radioso, os últimos 35 decepcionaram-me”), ou à certeza de que o Estado, que o desvalorizou em vida, o institucionalizará depois da morte, mas a esperança num mundo mais justo persiste. As páginas deste livro ecoam essa esperança, ao mesmo tempo que homenageiam a vida de Saramago, a sua obra e o seu imenso amor por Pilar.
Sem Comentários