“A minha hibernação tinha que ver com auto-preservação. Pensava que isso iria salvar-me a vida.”
Imaginem uma versão alternativa de Fear and Loathing in Las Vegas onde, no lugar de um jornalista freelancer, uma bagageira recheada com todo o tipo de drogas e uma varredura da cidade de Las Vegas, tivéssemos uma jovem mulher deprimida que, depois de ser despedida da galeria de arte onde trabalha – dormir na arrecadação terá ajudado -, decide fechar-se em casa e entrar numa hibernação induzida, na companhia de um catálogo de soporíferos. Tudo para cumprir um plano, a que chamará de “O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento” (Relógio D`Água, 2022).
Escrito por Otessa Moshfegh, que faz da subversão o tempero primordial da sua escrita, este é um romance que dá voz a alguém que procura o fim das emoções. Neste recolhimento auto-imposto, a protagonista revisita algumas relações que a marcaram como ferro quente: o passado destrambelhado com a mãe, com quem dormia muitas vezes junta em adolescente, acordando tarde e faltando a aulas sem levar justificação; a tóxica relação com Trevor, uma relação à qual pensa voltar – mais um de muitos regressos – apesar dos antecipados e repetidos “desgostos e indignidades”; ou o estranho apego ao vazio da casa dos pais, que hesita em colocar à venda, “como que para afirmar que era melhor estar sozinha do que presa a pessoas que nos deviam amar, mas não conseguiam”.
Em grande forma neste romance está também a Dra. Tuttle, uma das piores psiquiatras que o leitor irá descobrir dentro e fora da literatura, e que poderia bem ser a irmã gémea de Juliana Saavedra, “a psicanalista que deixa os pacientes na merda” – segundo o criador Van Der Ding.
Num limbo onde conta com um amigo para lhe tratar da alimentação, que surge como um fantasma por entre os seus períodos de alguma sobriedade, a protagonista torna-se uma sonâmbula, adepta de feng shui, de compras à balda ea rasar a atacado (de sessões para SPA a jeans novas) ou trocando fotos com tudo de indecente.
Um livro que é como um “A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer” mas em ácidos e que, depois de muitas voltas, nos conduz a uma verdade essencial: “Por vezes são os opostos aquilo que nos cola à terra”. Mesmo em registo mais repousado, Ottessa Moshfegh continua mais acordada – e em melhor forma – do que muito escritor alimentado a Red Bull.
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