“Simón” (Dom Quixote, 2023), romance assinado pelo barcelonês Miqui Otero, é um daqueles livros que poderão, com o passar do tempo, ganhar o estatuto de clássico, misturando uma certa veia “jovem adulta” com uma homenagem à literatura, que se serve tanto de dedicatórias de livros abandonados como de pistas deixadas, como sublinhados, para iniciar caças ao tesouro que deixariam orgulhosos os piratas.
Simón cresceu com os livros e entre os livros e, com eles, sentia ter bagagem para enfrentar o mundo. “Negociaria com a sua vida a partir do que tinha lido nos papéis. Não o sabia, claro, mas não seria fácil. Com aqueles ideais e aspirações, o seu primoirmão tinha-o convertido naquele tipo que há-de ir por aí brandindo um garfo num mundo onde só se serve sopa”.
Primoirmão que dá pelo nome de Rico, um herói para o pequeno Símon, que de um dia para o outro desaparece de cena, criando em Símon um sentimento de orfandade que aos poucos será preenchido pela comida – descobriu que “tinha um dom para a cozinha no dia em que confundiu o sal com o açúcar e caramelizou uma cebola numa salada de tomate e queijo de tetilla” – e por Estela, a menina do cabelo verde que vendia livros em segunda mão. Juntos procuravam Rico “mas encontravam-se eles”, construindo ficções e “finais alternativos para todas aquelas pessoas que tinham vendido os livros que prometeram nunca perder de vista”. Na busca pelo seu herói, de quem vai copiando formas de ser e estar como num religioso copycat, Símon irá cumprir uma jornada de auto-descoberta e reinvenção, a que não será alheia alguma desilusão e perdas com este seu amigo imaginário, tudo para perceber que “às vezes é preciso partir para poder voltar a casa”.
Para além do papel de parede literário com que está forrado de cima a baixo, “Símon” é também um livro atravessado pela política, seja pela menção o referendo para a independência da Catalunha ou o recordar da crise que abalou o país que, segundo Estela, “tinha sido aquele líquido de contraste que se injecta num exame médico para tornar mais visível tudo o que há de maligno num corpo, num sistema”.
Não faltam personagens paralelas fascinantes, tais como Oro, um cigano que não era cigano, que “tinha descoberto a rumba porque ouvia as palavras de um vizinho cigano e, desde então, tinha apanhado raios UV, tinha penteado o cabelo para trás com fixador e tinha pendurado algumas correntes ao pescoço”, ou o enigmático Alfaiate, exímio contador de histórias, com “os seus dois incisivos frontais de ouro”. Para além de um romance empolgante, o leitor levará para casa um importante ensinamento para lidar com o mundo: “mantém-te em sanidade”. E que melhor sítio do que os livros para o descobrir?
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