Publicado em 1902, “O Coração das Trevas” foi um mergulho nos limites da experiência humana, executado da prancha olímpica mais alta. No romance de estreia de Hugo Gonçalves, publicado em 2006, há também um coração pulsante: “O Coração dos Homens” (Companhia das Letras, 2022 – reedição). Um livro que se lê como um “Deus das Moscas” – ou “Senhor das Moscas, dependendo da tradução – calçando luvas de pugilista e cuspindo um lema de vida: atacar primeiro, nem perguntar depois.
Estamos numa Cidade-Estado, independente, com forças armadas de sobra e encravada entre dois países, onde não há espaço para as mulheres. “O desporto nacional é o pugilismo. Os estádios esgotam quando se disputa um título. Os pugilistas locais podem passar a fronteira, lutar no Estrangeiro para mostra o poder da Cidade”. A haver uma banda sonora oficial, seria certamente uma versão literal de “Boys Don`t Cry” dos The Cure, uma vez que não há espaço para fraqueza ou sentimentos, sendo a homossexualidade o pior dos crimes.
No centro da trama estão três homens, Ele, Mau e Grande, lutadores implacáveis que passam os dias envolvidos em tudo o que traga violência, escondendo tudo o que possa ser considerado como fraqueza humana. Há também um pai com um emprego secreto, que segundo ele “consolidará a supremacia dos homens”, num lugar onde “todos os artifícios de sedução estão banidos, tal como o carinho, o sono conjunto, as mãos dadas, uma cabeça descansando sobre um peito”. Porém, no dia em que um deles sai da Cidade-Estado e se vê colocado perante a presença feminina e o desconhecido, o confronto com a solidão e os valores inseminados torna-se inevitável.
A que lugar pertencemos? O que é a família? Que pedaços nos faltam que nos farão falta mais tarde? Questões que atravessam esta estreia de Hugo Gonçalves no romance, um combate literário de 12 assaltos ganho aos pontos e que circula por entre a recusa da mudança, a auto-preservação, a volatilidade da amizade, o patriarcado, as imposições da vida adulta e o perigo dos totalitarismos, levantando pelo caminho questões tão importantes como esta: “O que leva alguém a anular o pensamento crítico e a compaixão, diluindo-se por inteiro numa ideologia, ao ponto de matar e ser morto?”.
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