“[…] o que sentia talvez fosse essa sensação estranha, tão contemporânea, essa espécie de código do nosso tempo sitiado pelas imagens e pela violência, ou pela violência das imagens: a sensação, derivada da incerteza, de que tudo pode ser ficção ou, o que é pior, de que tudo pode ser verdade. A sensação de que não há nenhuma ameaça do mundo inventado que não possa transbordar para o mundo real e tornar-nos sua vítima.”
Se nos propusermos identificar um tema comum aos nove contos que constituem “Canções para o Incêndio” (Alfaguara, 2023), de Juan Gabriel Vásquez, esse terá de ser a violência nas suas múltiplas formas, desde aquela que os seres humanos exercem uns sobre os outros, até à que a doença lhes pode infligir. Esta temática cruza-se mais de uma vez com questões de manipulação da memória, como no conto “Aeroporto” – fonte do excerto acima reproduzido –, no qual um escritor principiante, a atravessar dificuldades económicas num país estrangeiro, é seleccionado para participar como figurante numa produção cinematográfica, o que o lança numa reflexão acerca da construção de memórias e da “inquietante relação entre o horror dos filmes e o horror da vida”.
Neste e noutros casos, o narrador que nos fala na primeira pessoa é um deslocado em busca do seu lugar no mundo, confundindo-se com o próprio autor e dificultando a distinção entre ficção e realidade – fronteira essa que também é esbatida, em mais de uma ocasião, por personagens que reconfiguram o passado para melhor se adaptarem ao presente.
Os textos cujo enredo é situado na Colômbia, país natal do autor, expõem cicatrizes de conflitos sangrentos, destacando-se aquele que dá título ao livro, por abarcar várias gerações, num período que vai desde a Primeira Guerra Mundial à última guerra civil colombiana, entrelaçando destinos tristes que se conjugam num final avassalador. Por outro lado, um confronto mais próximo do nosso tempo, travado entre o sistema judiciário e os cartéis do narcotráfico, é abordado em “Os rapazes”, através de jovens habitantes de um afluente bairro fechado, que se dedicam a lutas clandestinas como catarse contra a violência do exterior, a qual não deixa de afectar tragicamente as suas famílias.
Perante a desgraça, até o silêncio resultante da omissão de factos pode ser violento, como exemplifica o conto “As más notícias”. E o desejo de silenciamento de um crime desempenha um papel crucial em “Mulher à beira-rio”, onde uma fotógrafa celebrizada pelas “imagens mais pungentes” da última guerra civil colombiana faz uma descoberta inesperada durante uma fuga à rotina, num tempo que se afigurava mais pacífico. Em contraste com a violência explícita de outras narrativas, destaca-se aqui um trabalho admirável do autor na sugestão dos actos que moldam o curso dos acontecimentos. O resultado global é uma representação multifacetada do sofrimento humano, face a um mundo frequentemente cruel.
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