“Instruir o homem e corrigir-lhe os costumes, eis o único fim a que nos propomos nesta história. Oxalá os que a lerem se deixem penetrar pela grandeza do perigo que sempre persegue os que tudo se permitem para satisfazer os seus desejos.”
Estas primeiras linhas da novela “Eugénie de Franval” (E-Primatur, 2023), deixam adivinhar que se segue um texto moralizante, podendo ser surpreendente para muitos descobrir que o seu autor é Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade (1740-1814), nome vulgarmente tomado por sinónimo de perversidade sexual. Embora o sexo – mais concretamente, um caso de incesto – não deixe de ser um aspecto crucial da intriga, o objectivo da obra parece ser, sobretudo, demonstrar como a amoralidade tende a conduzir à imoralidade.
A história de Eugénie é também a dos seus progenitores. O Senhor de Franval, seu pai, é descrito como um homem abastado e atraente, “mas sob essa aparência sedutora ocultavam-se todos os vícios”. Os seus defeitos inatos, dos quais se destaca “uma desordem de imaginação”, aliaram-se à educação para que crescesse cheio de desprezo pelos deveres morais e religiosos preconizados pela sociedade. Por oposição, a mãe de Eugénie é um modelo de virtudes femininas, que casou sem conhecer a personalidade do marido e que, apesar de maltratada por ele, jamais perde a esperança de lhe agradar. Por vontade do pai, a única descendente do casal é afastada da mãe e submetida a um projeto educativo que, embora esmerado, exclui qualquer respeito por aquilo que ele considera “fúteis convenções humanas”, predispondo-a a transformar-se na sua amante perfeita.
Podemos interrogar-nos quanto ao respeito que Franval teria pela vontade da filha, caso esta o rejeitasse, mas o certo é que ela nunca o faz. Também é possível questionar se a jovem protagonista possui livre arbítrio, depois da formação que recebeu, mas quaisquer conclusões seriam provavelmente aplicáveis a todas as outras personagens. O certo é que Eugénie recusa ficar limitada a representar qualquer um dos papéis que o mundo lhe preparou, preferindo entregar-se aos seus sentimentos. E, embora seja fácil atribuir a Franval o papel de vilão, ele demonstra mais interesse e respeito pelos desejos de Eugénie do que as parentes femininas, nomeadamente a mãe e a avó materna, que não vislumbram outro futuro para ela além do casamento tradicional, chegando a envolver-se num plano para raptá-la em nome daquilo que julgam ser o seu próprio bem.
Perversamente, apesar da condenação reiterada do narrador, a relação incestuosa assume contornos de amor romântico, até que o desejo de eliminar todos os entraves à plena vivência da paixão conduz o par ao crime. Por mais implausível que seja o arrependimento final, perante o que conhecemos dos amantes, ele é indispensável quando o narrador pretende enaltecer a moderação, o bom comportamento, a sensatez e a modéstia. Claro que, pelo meio, Sade não perde a oportunidade de apresentar argumentos a favor do relativismo moral, nem de lançar uma farpa à Igreja, quando refere que a personagem do clérigo bem intencionado possui uma nobreza rara entre os indivíduos que usam aquela sotaina. Eis o que torna o autor tão subversivo: a capacidade de transmitir mensagens de desafio às normas, mesmo quando aparenta defendê-las.
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