Em 2016, com o selo da Quetzal, chegou às livrarias “Céu Nublado com Boas Abertas”, o romance de estreia de Nuno Costa Santos que dava continuidade a um percurso feito de livros – de poesia ou contos -, crónicas avulsas, aventuras bloguianas ou programas radiofónicos e televisivos. A partir de um livro do avô que descobrira numa estante – “um soldado esquecido” -, o autor ficcionou a história de um homem de regresso à sua terra, em nome de uma missão literária. Um livro feito de histórias e de tempos cruzados, atravessado por referências literárias e acompanhado por uma banda-sonora de eleição, que incluía Pink Floyd, My Bloody Valentine ou Jesus & Mary Chain. Sobre esse lado musical, o autor partilhou nesse mesmo ano em entrevista ao Deus Me Livro:
“Estou sempre a ouvir música. Ainda agora descobri uma banda de Manchester que me está a fascinar chamada Money, meio baladeira. Mas sim, os My Bloody Valentine fizeram parte da minha adolescência. Lembro-me de ter uma gravação em cassete que emprestei a um amigo que me disse que aquilo devia estar mal gravado. Também Jesus & Mary Chain, The Cure – muito – Joy Division, Bauhaus, B-52`s, mas coisas muito diversas como Meredith Monk, Michael Nyman, Wim Mertens, Miles Davis, Prince, muito daquele catálogo da 4AD, claro, que condiz na perfeição com a paisagem açoriana: como Cocteau Twins, Dead Can Dance, The Moon and The Melodies. Toda a minha vida insular foi cruzada pela música, e até já fiz um filme com amigos em que vou aos Açores buscar os discos que lá deixei, e que passam pelos Pixies, Stones Roses, Inspiral Carpets, Charlatans, nunca mais saía aqui. Mas vejo os discos como uma espécie de catálogo de amigos. A música para mim é tão importante como a literatura, só que nunca seria capaz de ser músico.”
Sete anos depois chega às livrarias este “Como Um Marinheiro Eu Partirei” (Elsinore, 2023), uma viagem com Jacques Brel, livro que regressa aos Açores, mantém o vinil a rodar em loop e que é, não sem alguma surpresa, uma dupla biografia de inquietações: a de Jacques Brel, na sua última curva existencial, mas também – e sobretudo – a do próprio Nuno Costa Santos, que desenha aqui um livro atípico, curto e musical, com tanto de romance como de ensaio (auto)biográfico.
Um livro que, tal como em “Céu Nublado com Boas Abertas”, arranca após um olhar curioso para a estante: “Sento-me à mesa do escritório e olho para a capa do último álbum de Jacques Brel, na estante, encostado nos livros”. Depois de um diálogo sonhado com Brel, a carta de intenções surge impressa na segunda página, no assumir de uma nova missão literária que implicará “carregar a tristeza das partidas”, “perseguir a estrela inacessível” ou “arder numa qualquer febre”. Uma odisseia pessoal que Nuno Costa Santos assume de pronto, qual Ulisses num exercício dado à catarse: “Não sei se serei esse herói, mas o meu coração ficará tranquilo”.
Por detrás desta aprumada construção narrativa está a decisão de Brel, então nos píncaros da fama, de abandonar para sempre os palcos, depois de num concerto ter repetido uma passagem da letra de Les vieux. “Como um homem envelhecido, enganou-se”. Aos 38 anos, Brel anuncia à imprensa e ao mundo o intempestuoso e prematuro ponto final, arrumado mais ou menos desta forma: “O quotidiano destrói tudo. É preciso ir ver”. Parte então, no seu iate, numa viagem sem regresso rumo às ilhas Marquesas, fazendo uma escala na Horta, Açores, onde atracou a 2 de Setembro de 1974), e que ficou registada de forma quase anónima num jornal local.
É esta a semente a partir da qual Nuno Costa Santos fará crescer este livro, dialogando com Brel como que ao espelho de um conto fantástico, interrogando-se sobre a demanda da paternidade – algo que para Brel era pura teoria – e, nesse exercício, descobrindo alguma paz interior e redefinindo, quem sabe, a própria amizade com Brel – um pouco como acontece com a maior parte das amizades de escola. Afinal, como pergunta a certa altura, “não será a biografia, para um escritor-biógrafo, uma forma de se apresentar através dos vestígios dos outros?”.
Ao longo do livro, são várias as pontes criadas com o autor de “Ne me quitte pas”, como terem ambos partido como marinheiros ou de partilharem o mesmo registo melancómico – “Brel praticava, em modo maior, a sua gincana entre a tragédia e a comédia”. Há, pelo caminho, muitas notas, retratos e memórias de Brel, como o facto de este, quase sempre, ter sido visto como um misógino provocador, ou de Edith Piaff, de forma pouco abonatória, considerar inaceitável a sua postura de homem suplicante – ele sobre o qual disseram ter sido “o bobo da corte de uma geração”. Brel por quem o autor se apaixonou “pela música, vulcânica, na sua construção engenhosa feita de voz, performance, letras e arranjos. Pelos temas. O amor, a relação com os lugares, a amizade, sentimento maior e nem sempre fácil de encontrar nas artes com a verdade que merece”.
Para além da biografia, Nuno Costa Santos esmiúça também algumas das letras de canções de Brel, colocando-os em paralelo com a vida do músico, dando a este “Como Um Marinheiro Eu Partirei” uma certa nuance de Rei Lagarto, a mítica colecção da Assírio & Alvim dedicada à música – a antologia poética de Jacques Brel foi publicada no volume 11. Quase como começa, o livro termina desta forma (não é spoiler): “Um homem fuma um cigarro à proa de um iate, concentrado no som do mar”. Se esse homem for Nuno Costa Santos, talvez de seguida coloque os auscultadores e ouça estes versos, enquanto os olhos se perdem na linha do horizonte:
Comme un marin je partirai
Pour aller rire chez les filles
Et si jamais tu en pleurais
Moi j’en aurais l’âme ravie
Comme un novice je partirai
Pour aller prier le bon Dieu
Et si jamais tu en souffrais
Je n’en prierais que mieux
(…)
(Jacques Brel, La Haine)
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