“Cem Anos de Perdão” (Companhia das Letras, 2022), romance assinado por João Tordo, retoma o tema do fanatismo religioso e das seitas. Basta uma visita rápida aos noticiários da actualidade – ou uma pesquisa retrospectiva – para se localizarem relatos de gente a viver em locais remotos, entregues ao que começa por parecer uma evasão voluntária da sociedade para se descobrir, afinal, tratarem-se de formas de extremismo ideológico, assentes em abusos físicos e emocionais. À capacidade de atrair seguidores, somam-se os obstáculos à sua saída. Os desfechos, breves ou tardios, passam quase sempre por devotos que sucumbem, seja por suicídio, como resultado de condições de vida difíceis ou pela falta de cuidados médicos.
A relação entre os religiosos e a fé ocorre, em geral, pela crença e pela lealdade. O devoto de uma religião não precisa, em tese, de confirmações materiais para a fundamentação daquilo em que acredita. Simplesmente aceita, seja por questões pessoais, materiais (através dos ditos milagres), por hábito ou cultura. Seita, por sua vez, significa seguidor. Geralmente, uma ou mais pessoas fundam uma seita quando passam a divergir do pensamento tradicional, acumulando seguidores dessa nova forma de pensar. Aquilo que poderia ser um exercício de liberdade plena, de ser divergente e até contracorrente, quase sempre resvala para formas dissimuladas de afirmação e de coacção, de escrutínio forçado e de recurso ao totalitarismo para a auto preservação: “A igreja é como a televisão, uma forma de condicionar a nossa mente“.
É numa pequena e remota ilha, ao largo da Inglaterra, que Pilar Benamor, a jovem portuguesa e ex sub-comissária da PSP, se vê envolvida na investigação de um crime violentíssimo entre irmãos, trazendo à superfície o mal-estar entre os ilhéus e os Filhos de Dismas, uma seita religiosa com mais de trezentos anos de existência.
Pilar, a personagem que regressa depois de em fuga de si própria se ter afastado do mundo para viver anonimamente em Helsínquia, revela como alguém às voltas com os traumas de infância e sofrendo de impulsividade crónica se torna empedernida, destemida, irracional. Antes da mudança geográfica, Pilar era uma mulher incapaz de construir uma relação e de assentar, fundamentalmente alguém que nem de si própria sabia cuidar. Em Helsínquia, onde se refugiara, a sobrevivência passou pela luta com a sua própria dificuldade de se distanciar da besta que a maltratara, deixando-a refém da dor e da sua fonte. As vivências implacáveis que passara instigaram-lhe uma fúria cega relativamente aos homens, a uma vontade de aniquilamento na gestão de uma dor prenhe de devastação interior.
Como polícia, Pilar mandara às urtigas todos os preceitos de assepsia policial. Em St. Dismas, envolve-se na investigação de mais um crime bárbaro, voltando a estar no limbo da legalidade e a reviver a pressão do tempo da investigação. Paralelamente, numa prisão inglesa onde se encontra Cícero Gusmão, outra personagem já conhecida do anterior volume “Águas Passadas” (ler crítica), são aflorados os códigos de conduta e de sobrevivência entre reclusos e guardas. O retrato é pungente e realista, sem hipérboles.
“Cem Anos de Perdão” lê-se de forma independente de “Águas Passadas”, ainda que se completem no desenho do perfil das duas personagens principais, Pilar e Cícero. No final, fica a certeza da longevidade das mesmas – assim o autor o deseje.
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