Literatura e Futebol. Dois mundos bem distintos que, normalmente, andam de costas voltadas um para o outro, como se fosse considerado má conduta a intelectualidade interessar-se por esse desporto de massas que, falando numa linguagem estupefaciente, muitos chamam com um esgar de desprezo de ópio do povo.
Na abertura da mesa intitulada Literatura e Futebol (no âmbito do FOLIO – Festival Literário Inernacional de Óbidos), Joel Neto – autor do muito recomendado “Arquipélago” (Marcador) e cronista desportivo no jornal O Jogo – evocou dois monstros literários para quem o futebol era o mesmo que oxigénio: Albert Camus – de quem falámos há pouco no Deus Me Livro e que jogou na ingrata posição de guarda-redes – e Carlos Drummond de Andrade. Um português e um brasileiro, tal como os dois escritores que estiveram de equipamento completo no terreno de jogo: Sérgio Rodrigues – autor do recente “Drible”, com edição portuguesa da Companhia das Letras – e Francisco José Viegas – autor, entre outros, do policial “Morte no Estádio”, reeditado recentemente pela Porto Editora.
Joel Neto apitou para o início da partida lançando o tema do futebol do ponto de vista comercial, uma vez que não abundam romances, dos dois lados do Atlântico – cingindo-nos a Portugal e Brasil -, que tenham o desporto rei como grande motivo ou inspiração. Sérgio Rodrigues referiu o preconceito brasileiro contra a literatura de futebol – entre outros preconceitos mais sérios como o racismo -, da pouca ficção para tanto futebol existente num país onde este tem uma “ligação directa à alma do povo.” Para Francisco José Viegas há poucas figuras dramáticas ou enredos verdadeiramente trágicos que permitam elevar o futebol a assunto de romance. Futebol que, para o escritor, se situa num mundo oposto ao da Literatura. Aliás, mostrou-se muito descrente em relação a estes dois mundos (sobretudo ao futebol).
Coube também a Francisco José Viegas recordar os tempos áureos da crónica futebolística portuguesa, quando gente como Carlos Pinhão ou Carlos Miranda – a chamada Geração de A Bola – faziam da crónica um verdadeiro estado de arte. Ou, do outro lado do Atlântico, as de Nelson Rodrigues, que a partir dos jogos – diz-se que a eles assistia de costas voltadas – criava verdadeiras pérolas de ficção, transformando um jogo sem história num momento trepidante.
Já Sérgio Rodrigues apontou baterias aos Estados Unidos, considerando que na terra do Tio Sam o futebol é um desporto de mulheres (enquanto Viegas disse temer – e talvez desejar – o dia em que o rugby também se jogue no feminino). Viegas teme que esta transformação americana do futebol em desporto universitário retire a componente humanista ao jogo – e até mesmo a sua memória -, que funciona muitas vezes como a âncora geracional que vai unindo famílias (longe das discórdias parentais em relação a piercings ou cortes de cabelo) e, em muitos casos, amigos. Seja como for, ambos concordam numa coisa: qualquer dia o país arrisca-se mesmo a ganhar qualquer coisa no futebol, e não apenas no americano.
Em oposição ao futebol europeu, Sérgio Rodrigues opõe a diversão, a individualidade e a dança do futebol brasileiro, que com tanto espírito poético e fugas massivas se arrisca a perder o protagonismo conquistado desde sempre. Parece que os 7-1 deixaram marcas inapagáveis e que a vergonha irá durar décadas.
E haverá maior traição que a de um filho que escolhe um clube diferente do do pai? Para Francisco José Viegas, um portista que começou por ser adepto do clube do leão – tal como o seu pai -, não há qualquer problema. A não ser que esse clube seja o Benfica.
Já no campo da literatura e de se esta promove os valores cívicos, a resposta de ambos foi um claro não. Viegas avançou que “a literatura só nos torna infelizes. Conduz às drogas e a atitudes pouco cívicas”. Coisas boas portanto. Sérgio Rodrigues não se quis ficar atrás nesta negação da literatura enquanto boa rapariga, afirmando que “não se faz literatura ou política com bons sentimentos”, confirmando que existe um lado negro no futebol, que ainda assim passa bem com muitas das coisas que a modernidade considera imprescindíveis – e que Francisco José Viegas, exemplificando com o estado actual dos programas desportivos que ocupam as televisões, apelidou de pornografia. Aceita-se apenas a vertente da malandragem, aceitando a falha humana como parte integrante e fulcral da história. O que seria, questiona Sérgio Rodrigues, da história do futebol sem a mão de Diego Armando Maradona? Uma maladragem que, no entanto, ficaria melhor quando compensada com um lado cavalheiresco, trazendo Viegas à lembrança um dos maiores cavalheiros já que pisou os relvados nacionais: Sir Bobby Robson. Joel Neto apitou para o final do jogo e, pode dizer-se, os poucos mas fiéis adeptos presentes no estádio saíram satisfeitos – alguns mesmo abraçados – com este empate entre clubes de países irmãos.
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