O que aconteceria se, a dado momento, o primeiro cacilheiro da manhã, indo da Margem Sul a caminho de Lisboa, parasse a meio da travessia para apanhar o choco que decidiu mostrar os tentáculos depois de uma noite de maré alta?
“Espelho da Água” (Polvo, 2022), a adaptação ilustrada de João Sequeira de um conto de Rui Cardoso Martins, está longe de querer responder a esta pergunta, mas é a partir desta improvável optimização de recursos que mergulha numa história de morte e alguma melancolia, que abrirá o livro de inúmeras e anónimas vidas. Sempre com o som da “zanga interminável” das gaivotas a fazer-se ouvir bem alto.
Com o vislumbre de um corpo à deriva, os cerca de 200 passageiros deste cacilheiro imaginam os últimos momentos da vida desta mulher, partindo depois para uma radigrafia introspectiva. Uns deixam-se levar pelas saudades da terra, numa vontade de mergulhar no rio de todos os recomeços; há quem passe o dedo pelas cicatrizes deixadas pelo (des)amor, enquanto se lamenta o fim forçado dos cigarros; quem, com as mãos queimadas do detergente, viva na companhia de um frigorífico que parece ter vida própria, reflexo mecânico de um filho também ele problemático; ou, ainda uma mulher grávida dividida entre o peso de dois amores.
Quanto ao capitão deste empreendimento marítimo, um misto de filósofo de água doce e relações públicas, deixa o desafio depois de uma analítica mas passageira viagem marítima: “Vão às compras, roubar, apaixonar-se. Estamos bem e amanhã é outro dia e nada de mau se passou, podem regressar à vontade, o barco é vosso”.
Uma história onde o antigo e o moderno nadam lado a lado, e onde surgem ondas que trazem notas sobre a imigração, a globalização e o tão propagado progresso. Sempre a preto e branco e num traço onde quase se escuta o deslizar do aparo, João Sequeira aposta num traço cru, com algo de grotesco e disforme, que assenta na perfeição a este conto existencialista.
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João Sequeira (Portalegre, 1971) é licenciado em Arquitectura, com formação complementar em desenho, pintura, banda desenhada e animação. Além das participações em fanzines e revistas de Banda Desenhada, é autor dos álbuns “Metamorfina” (2005), “Psicose” (2012), “F(r)icções” (2014), “Tormenta” (2015) e “Lugar Maldito” (2017). Recebeu o “Prémio Nacional para Melhor Desenho para Álbum Português”, atribuído pelo Amadora BD em 2016, e uma bolsa de criação literária atribuída pela DGLAB em 2021. É professor de desenho na ESTG-IP Portalegre, desde 2018.
Rui Cardoso Martins (Portalegre, 1967) é escritor, argumentista e jornalista. Ganhou por duas vezes o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores (APE), em romance e crónica. Tem dois prémios Gazeta de jornalismo. Pelo seu trabalho em cinema e televisão, recebeu vários prémios Sophia, Globos de Ouro e a competição na mostra principal do Festival de Cinema de Veneza. Tem romances e contos publicados em várias línguas.
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