De todas as viagens que fazemos na vida, as incursões nas memórias de infância serão das mais mágicas, o regresso a um passado que pode não ser muito factual ou fiável mas é dotado do encanto da meninice, desses óculos multicoloridos que trazem um significado especial às coisas mais simples. Em “Era Uma Vez Eu”, (Booksmile, 2015), José Fanha convida os mais pequenos a juntarem-se a ele numa viagem no tempo à sua infância, através de pequenas histórias que conta com pinceladas e polaroides nostálgicas, divertidas e ternurentas.
Bem acompanhados pelas ilustrações evocativas de Rui Ricardo, os episódios da meninice do autor são contados com a ordem da memória, ou seja, de forma não linear, espontânea como o acto de recordar, com os pormenores e a lógica que cada idade implica. Tudo começa com uma recordação deliciosa, a de estar debaixo da mesa, de se ser pequenito e estar nessa gruta maravilhosa, simultaneamente aberta ao mundo e protectora. Conseguimos imaginar-nos numa situação semelhante, lembrar-nos daquela idade muito tenra em que começamos a processar o mundo a partir de um refúgio seguro. Antes de sermos absorvidos e centrifugados no tambor violento e incrível da realidade, estamos num limbo, na ombreira, a espreitar e a molhar os dedos dos pés, e sermos transportados para esses momentos quase oníricos é sempre um prazer.
Uma das melhores qualidades deste livro será a forma como apraz e desperta dois públicos: as crianças e os pais. Ao passo que os mais pequenos são expostos ao elogio da literatura como veículo privilegiado para a descoberta – sentirão certamente uma grande afinidade com a mundividência do pequeno Fanha -, os adultos têm aqui um lembrete do deslumbramento e do mistério que nos rodeava em crianças, dos crescidos difíceis de compreender, dos jardins antigos repletos de perigos míticos, dos sentimentos confusos perante aqueles momentos que agora podem não nos aquecer nem arrefecer mas que, no turbilhão da infância, eram fins de mundo e big bangs, situações de vida ou de morte.
O autor sabe muito bem imprimir na página a visão infantil do mundo, em toda a sua falsa simplicidade, pois como pode ser simples a descoberta da vida e das coisas? Mesmo que os episódios sejam breves fotogramas de situações que todos vivemos de uma maneira ou de outra, não são por isso menos prenhes de significado. São, na realidade, a ponta do icebergue, o pequeno e modesto porto de onde se zarpa para a grande viagem da vida.
Temos aqui um bom ponto de partida, uma porta que se entreabre para os pais e os filhos. É um convite aos adultos para embarcarem na tal viagem no tempo e partilharem as suas próprias experiências e vivências com os petizes, para explorarem esse incontornável ponto em comum que têm com eles: a infância. Pode já ter passado mas acompanha-nos, e revivê-la com quem está a vivê-la é enriquecedor. Como José Fanha muito bem sabe.
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