Na declaração de intensões – assim mesmo – com que abre “Hamsterdão, e alguns desapontamentos de poesia tópica” (edição de autor, 2022), Rui Portulez trincha a poesia em cima de uma mesa de mistura e tempera-a com um raminho de ervas confessionais: “a meu favor / muitas canções de amor / versos que só eu sei de cor / e pouco mais).
Para muitos, Amsterdão é aquele lugar onde se vai em busca de um café simpático, onde se possa enrolar um charro sem ter a polícia à perna ou, para os mais dados a confortar o estômago, uns bolinhos com ingredientes extra. Para Portulez, que trata de inventar aqui a sua própria cidade, esta será um pouco a terra de todos nós, uma utopia nebulada onde “usamos espressões / em série / de televisão”, esperando “pelo anúncio da próxima rodada / para voltar a encher o copo”.
Recusando fazer a revolução no sofá, Rui Portulez dispara em várias direcções, soprando a nuvem de forma difusa a que chamamos cloud, definindo a (nova) imortalidade como o “acaso de alguém tropeçar em nós”, caminhando pela terra do like tentando não ficar enleado na “sobredose de informação” ou no extenso “rol de cenas” que nela habitam. A rádio, essa, continua a merecer os mais rasgados elogios, uma forma de resistência que caminha em ondas hertezianas: “há gente tresmalhada / energia e bons refrões / em transferência modelada”.
Em tempos de enfiar a cabeça na areia ou no forno, as dúvidas chegam a perturbar até o espírito mais irrequieto: “vale a pena insistir? Vale a pena resistir? Vale a pena um bom refrão? Vale a pena outra canção? Vale a pena apresentar reclamação?”. Como começar, então, a revolução que a todos toca, tirando o caruncho a um reino que está tão podre quanto o da Dinamarca imortalizada por Shakespeare? Talvez começando por aqui: “há que levantar o cú do sofá, ya / e os olhos do umbigo”.
Como muleta ou consolo, teremos sempre a música – e o vinho: “é urgente convocar / o cancioneiro popular / e deixar a porta aberta / ao desvario e fruição / da pop descoberta / à canção de intervenção / à loucura e ao protesto / brindo de copo na mão / emborco tudo de resto”.
Anos depois de “Rima não rima?”, livro de poesia para adultos descomprometidos com letras que dariam canções para gravar um novo disco para meninos, Rui Portulez faz do verbo fazer o motor da revolução: “fazer de conta / fazer por fazer / fazer por dever / é coisa de valor!”. O livro fecha-se, mas a janela com vista para esta Hamsterdão comum fica aberta. Saltemos.
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Rui Portulez trabalhou como A&R na NorteSul e trabalha actualmente como programador e produtor do MAP, Mostra de Artes da Palavra de Oeiras. É autor de vários documentários sobre a cena musical portuguesa independente (“I love my label” na Antena 3 e “Uma espécie de punk” na Antena3 / RTP 2). Trabalhou como radialista (RUC, XFM, Oxigénio) e como jornalista de música no Público, entre outras coisas. Todos os dias ouve Gil Scott-Heron, John Coltrane, LCD Soundsystem, Moodymann, Sleaford Mods, NxWorries, Ermo, Pega Monstro e Bruno Pernadas.
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