“Os livros de admissões de doentes do hospital Miguel bombarda estão cheios da frase «foi convertida em definitiva a admissão provisória por se ter verificado a existência de alienação mental»”. Uma justificação vaga, escrita de forma rebuscada para firmar o que, entre leigos, se explicava com um dedo indicador a rodopiar junto à fronte ou, em alternativa, com a simples catalogação: era maluqinho.
“Coisas de Loucos” (Tinta da China, 2020) é isso mesmo: uma catalogação minuciosa e brilhante feita por Catarina Gomes, de vidas que se perderam quando ficaram suspensas por internamento no Manicómio Miguel Bombarda – ou Rilhafoles -, em Lisboa. Contrariando os sucessivos abandonos a que foram sujeitos, a pesquisa da autora – que se lê como um romance – devolve a dignidade e um lugar na História a estes doentes esquecidos – a estas pessoas.
O livro é o resultado de visitas ao local e de um esmiuçar de literatura, relatórios, fotografias e objectos mais ou menos conservados, juntamente com testemunhos de familiares e conhecidos dos doentes. Tudo porque, ao descobrir uma caixa recheada de coisas de loucos algures esquecida num depósito do Hospital, Catarina Gomes não mais sossegou até descobrir as histórias ali adormecidas.
“Ao ser aberta, a poeira espalhou-se pelo ar. Ocorreu-me como pó, parecendo apenas sujidade, é também testemunha de vida, excrementos de ácaros, fibras de tecidos, pele morta. O que encontrei dentro da caixa nunca mais me abandonou. (…) E é sabido que os doentes mentais providenciam óptimas deixas literárias. O médico Luiz Cebola fez um livro só com frases «colhidas nos departamentos da loucura», incluindo em Rilhafoles. Como não ver sabedoria na frase do internado: “na minha terra dizia o meu irmão que eu vegetava, mas aqui: animalejo.”
Na busca por essa sabedoria, mas também por devolver dignidade a muitos destes loucos esquecidos – embora, pelo que lemos, tenham sido mais esquecidos do que loucos -, a autora faz também um retrato de época, dentro e fora de portas do Hospital, desde a legislação de Salazar e à forma em como lidava com os “vagabundos e mendigos” às dificuldades que obrigavam as pessoas emigrar e a procurar mais do que «pão com sol».
No encalce dos diagnósticos e das “pretensões clínicas” que deformaram os motivos de muitos dos internamentos, “Coisas de Loucos” cativa o leitor e vicia-o, como num thriller: precisamos de saber mais, queremos compreender a injustiça e o abandono mesmo que, à luz das limitações da época, sejamos distraídos para detalhes históricos, estórias rocambolescas, momentos épicos (como o do Tom Sawyer de São Martinho do Porto) que habilmente nos transportam para cenários que inundam os sentidos: “aqui o vento tem o som da prata e da película de plástico que ainda as protege”.
Ainda assim, o relato não romanceia ou desculpa a segregação feita a estas pessoas: “E é como se a soma de todos estes relógios, entregues pelos próprios na sua admissão ao hospital juntamente com outros pertences, representasse a entrega do tempo”. O tom também não é critico ou emocional, antes equilibrado, demonstrando afecto e vínculo com estas pessoas, sensibilizando o leitor enquanto o envolve e vicia no enredo, levando-o a conhecer detalhes técnicos. É um trabalho laborioso e de muita mestria, de quem “vai buscar o passado a um armazém” e tenta não se perder como os que vagueavam no pátio de forma anelar: “Vês como eu vago n’este labirinto/Perdido, triste, alucinado, – ai!”.
O labirinto é complexo e frondoso, e Catarina Gomes percorre-o demonstrando que um “descarrilamento do pensamento”, uma paragem temporária, uma suspensão do tempo, podem redefinir, afunilar ou até mesmo inutilizar uma vida. Porque a doença mental continua a ter muitas nuances e estados crepusculares, e a medicina ainda garatuja muitas teorias, onde os diagnósticos se apoiam em fármacos mas continuam nebulosos no que toca a certezas.
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