Tal como a manga, fruta nacional do Paquistão, da Índia e das Filipinas – e também a árvore nacional de Bangladesh –, expandiu o cultivo, o culto e a adoração a uma outra série de geografias, também o mangá japonês – espécie de manga fatiada aos quadradinhos e vinhetas – deixou de ser, há muito, pertença única do Japão, com desenhadores um pouco por todo o globo a mergulharem neste género, cuja origem recua até ao Teatro de Sombras do Japão feudal.
Em Portugal, tem sido Kachisou a dar cartas no universo mangá. Nascida em 1994, Kachisou é uma ilustradora e autora de banda de desenhada nascida em Faro. Leitora de BD desde muito nova, descobriu os mangás aos 15 anos e, depois de ler uma entrevista com a autora Hino Matsuri, decidiu ser artista de mangá. No Japão, o seu trabalho arrecadou uma série de prémios, muitos deles no Japão. Em 2019, já a jogar em solo nacional, foi a vencedora do concurso Universo Manga 2019, organizado pela Bubok e pelo ptAnime, que lhe permitiu a publicação do seu primeiro livro, “Weak”, uma antologia de histórias curtas.
Com o selo editorial partilhado entre A Seita e a Comic Heart, chegou em 2022 às livrarias – e servido em capa dura – “Quero Voar” (A Seita/Comic Heart, 2022), uma novela gráfica carregada de drama que tem lugar durante a tempestuosa adolescência. No centro está Kyle, em quem os pais depositam expectativas estratosféricas, vendo nele um veículo para viverem os sonhos próprios que não conseguiram cumprir: tornar-se médico.
Depois de um percurso imaculado, controlado ao milímetro por um pai autoritário, as notas de Kyle começam a descer, o que faz com que o cerco parental aperte ainda mais, juntando-se uma série de castigos avançados por uma religião opressora. Apesar de continuar a ser o melhor da turma, vê-se privado de todas as “criações do diabo”: telemóvel, Internet ou televisão. Perante a explicação do pai, Kyle dá por si a duvidar do caminho escolhido para si por outros, bem como daquele futuro que lhe é vendido como a terra prometida: “O que significará realmente «é para meu bem»?”, pergunta-se.
A libertação começa a ser desenhada no reencontro com Jack, o amigo com quem, na infância, partilhava o sonho de se tornar um herói e de ter, tal como Batman, o seu próprio esconderijo. Com um pai alcóolico e um ambiente familiar em grangalhos, Kyle não teve propriamente uma adolescência tranquila, vivendo os dias como um traficante a quem foi exigida uma severa sobriedade. Tudo o que estava recalcado em Kyle liberta-se a partir deste reencontro, onde irá tentar não ceder ao “doloroso vazio” que o atormenta – traduzido musicalmente, será o “Estou bem aonde eu não estou/Porque eu só quero ir/Aonde eu não vou” de António Variações.
“Quero Voar” toca, com espírito poético, no tema da saúde mental, bem como na pressão familiar exercida sobre jovens em formação, para quem o futuro é ainda um mundo de possibilidades. Ainda que a narrativa não guarde grandes surpresas, é um livro no qual a arte de Kachisou dá cartas, mostrando que há ainda muito de bom a esperar desta artista.
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