“(…)a literatura tinha prometido a vida eterna e agora fechava a eternidade num exame seco, frio, com números e gráficos, em bulas de medicamentos e receituários que haviam de inundar a mesa da sala, onde ela tinha espalhados os seus livros favoritos. A conversa infinita acabava num diagnóstico.”
Um narrador-realizador vê-se a braços com o argumento mais difícil de escrever: fazer da 7ª arte, essa conversa infinita (tal como a literatura), uma resposta para a finitude da vida – a vida da sua própria mãe, uma mulher fora do seu tempo. ”Uma pessoa fora do seu tempo é uma pessoa a quem o tempo deixou uma marca que a condiciona”, mas como filmar a vida ignorando deliberadamente as marcas que a condicionam?
Em “Que a Vida Nos Oiça” (Oficina do Livro, 2023), Vicente Alves do Ó compõe um romance onde encerra, no mesmo narrador, diversas vozes – consoante quem o ouve -, embora converse muito sozinho. Isto, não obstante ter uma terapeuta, amigos, uma mãe, uma produtora, uma ex e um irmão, e também conversas que se estendem à paisagem, aos livros e à poesia, Uma conversa travada, afinal, com a vida, não sabendo se o faz por se sentir transparente e em recuperação, se para obter respostas ou, simplesmente, para se perder entre mais perguntas.
“Quem é que toma conta de mim quando eu for uma ruína?”. A pergunta não é da mãe, mas podia ser. A certa altura, as perguntas de uns e de outros confundem-se, fundem-se e, por isso, torna-se difícil obter uma verdade e um entendimento para lá da memória. E, contra o esquecimento, é evocada a poesia.
É dentro deste misterioso engenho da memória e do processo criativo – “mecanismos que aceleram o trabalho da imaginação” – que o narrador-realizador vai combatendo: contra si e contra o inevitável. Herdou da mãe essa resistência combativa, e vive como “se a vida fosse constantemente um gerúndio”, como “um canário. E, para um canário, já ultrapassou em muito a sua esperança média de vida (…), é um milagre para um pássaro preso há 32 anos”. Mas como fazer um filme que evoque serenidade, quando o pássaro está preso e a memória o atraiçoa sobre quem – e o quê – o aprisiona?
1 Commentário
A história de um realizador à procura de um final feliz feliz para a sua vida, o que aconteceu quando decidiu aceitar as suas imperfeições e as daqueles que o rodeiam.
Li “de um trago”, pela história, pelas vidas criadas, mas embati numa má revisão de texto. Não me lembro de encontrar tantos erros num só livro (há/à é apenas um deles…).