“Só aqui Pasha toma consciência do medo que sente. Pegajoso e frio. Como se alguém tivesse aparecido, tirado a morte de um saco, lha tivesse mostrado e depois escondido de volta no saco. Mas ele já a viu. Sabe que podem voltar a tirá-la a qualquer hora, em qualquer lugar.”
Um ano e meio antes do início da acção de “Internato” (Elsinore, 2023), Pasha levava uma existência pacata, ligeiramente desiludida, na qual “não olhava para longe, não conversava com estranhos, sabia a localização de todas as coisas e objectos de que precisava”. Como professor de língua ucraniana, ganhava o suficiente para uma vida comedida. Porém, desde então, a guerra dominou o quotidiano, ao ponto de o silêncio se tornar suspeito quando as explosões param. As crianças fugiram, a namorada deixou-o, e caras conhecidas partiram para combater – algo que Pasha está isento de fazer, devido à deficiência numa mão. Embora repita a si próprio que vive em “tempos estranhos”, nos quais “não podemos cuidar de ninguém, não nos podemos agarrar a ninguém”, este anti-herói aceita, por insistência do seu velho pai, uma missão arriscada: trazer para casa o sobrinho de 13 anos, deixado pela mãe – irmã de Pasha – num internato.
A odisseia durará três dias, cuja contagem é desafiada pelo desaparecimento da noção do tempo, e nos quais Pasha presenciará cenas que outros vêem nos noticiários televisivos. Atravessará territórios minados em vários sentidos, desde zonas urbanas sob fogo de artilharia, onde as edificações da civilização – como o tribunal, o banco, a farmácia, os centros culturais, a escola, ou a banca de jornais – foram destruídas ou abandonadas, até vastas florestas de árvores esturricadas envoltas em fumo, onde a neve lhe parece podre.
Entre a hostilidade dos homens e a da natureza, Pasha lutará contra o frio, a fome e o medo. Constantemente atento aos sotaques dos seus interlocutores, resistirá a todas as pressões para tomar um partido e fugirá de todos os indícios de crimes de guerra. Encontrará soldados – nem sempre com uniformes identificáveis – e grupos de gente errante, por quem se responsabilizará mais de uma vez. Diversas figuras secundárias interagirão com ele, para logo desaparecerem da narrativa, sendo algumas delas evocadas mais tarde, através de vestígios que deixam adivinhar destinos trágicos, reforçando as sensações de desalento e de perigo iminente que atravessam o texto.
O multipremiado autor Serhij Zhadan, nascido em 1974, perto de Lugansk, na Ucrânia de Leste, combina as palavras de modo a envolver impressões multissensoriais na criação de um ambiente apocalíptico, no qual a escuridão “move-se e lateja”, a lua surge “tingida de vermelho por baixo, como se tivesse sido mergulhada em sangue quente”, e o mundo, em geral, “faz lembrar um pedaço de neve nas mãos quentes de alguém”, a derreter e a escorrer enquanto arrefece quem o segura. É inescapável a ironia de sentirmos que aquele território disputado e dilacerado, que pode parecer infindável a um ser humano forçado a percorrê-lo, acaba por se assemelhar a um internato claustrofóbico gerido por uma divindade cruel.
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