Kurt Vonnegut é um herói literário, ponto final. Desde a sua morte em 2007, muito se tem escrito acerca do papel de Vonnegut enquanto ícone do movimento pacifista norte-americano e, sobretudo, sobre a vasta geração de autores que a sua escrita inspirou. No entanto, pouco se tem falado sobre as figuras orientadoras do próprio — quem contribuiu para a excepcional criatividade de Kurt Vonnegut, quem foram os seus heróis pessoais?
A julgar pelo elenco deste livro, os ídolos de Vonnegut terão sido Mary Shelley, Asimov, Newton e Shakespeare. Foram estes os vultos que o autor decidiu “entrevistar” em “Deus o Abençoe, Dr. Kevorkian” (Grupo Narrativa, 2022), um notável exercício de escrita criativa, que começou como uma série de interlúdios para a estação de rádio pública de Nova Iorque WNYC e acabou publicado em livro, que se encontra agora disponível em Portugal por ocasião dos 100 anos do nascimento do escritor norte-americano.
Ao todo, o livro compila 21 encontros post mortem de Vonnegut com defuntos famosos, entre eles personalidades literárias, assassinos ilustres, políticos influentes e membros da sociedade civil dos EUA. A premissa é simples: Kurt Vonnegut morre e vai para o Céu, onde conversa com cada uma destas celebridades falecidas. No final de cada entrevista, o “repórter da WNYC no Além” é trazido de volta à vida e ao mundo terreno para nos contar a história.
Fazendo uso do seu tom provocador, casual e cómico de sempre, Vonnegut encena esta série de “experiências de quase-morte controladas”, imaginado-se nas mãos de Jack Kevorkian, o afamado médico e activista a favor da eutanásia, que nos anos noventa ficou conhecido como Dr. Morte, Deus o abençoe.
Com um pé na cova e o outro fora, Vonnegut reflecte sobre o fim da vida material neste seu livrinho de “conversas com os mortos-e-enterrados”. Em “Deus o Abençoe, Dr. Kevorkian”, lembramo-nos que é um facto (e uma tremenda pena) que tudo tenha um fim. Felizmente, para a sessão de encerramento podemos sempre contar as eternas palavras de um sensacional mestre de (poucas) cerimónias — um escritor e herói que se despede com “até à próxima, fofinhos, chauzinho”. Que Deus o abençoe a si também, Kurt Vonnegut.
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