“Este romance é inspirado por factos e personagens reais, a quem o autor atribuiu uma vida privada e declarações imaginárias. Trata-se, contudo, de uma verdadeira história russa.”
Giuliano da Empoli, conselheiro político ítalo-suíço, faz-nos este aviso logo no início do seu primeiro romance, “O Mago do Kremlin” (Gradiva, 2022), mas não facilita a identificação da fronteira entre realidade e ficção. Aquilo que talvez fosse considerado rebuscado se não estivesse a decorrer uma guerra na Ucrânia afigura-se assustadoramente plausível, tornando a leitura deste livro urgente para compreender melhor como se chegou à situação actual no Leste europeu.
O texto centra-se na personagem de Vadim Baranov, inspirada em Vladislav Surkov, outrora um poderoso conselheiro e propagandista do líder russo. Anos depois do seu afastamento, esta figura enigmática entra em contacto com o narrador – um solitário académico estrangeiro em Moscovo – a propósito da investigação deste sobre o autor de uma distopia publicada no início do século XX, e o resultado do encontro de ambos é uma reflexão sobre a implementação de um projecto de poder absoluto.
Baranov partilha a sua história, começando pelas origens familiares: o avô era um aristocrata hedonista que lhe ensinou que se pode ser feliz em qualquer regime, enquanto o pai – um membro dedicado do Partido Comunista – viu todas as suas referências ruírem com a Perestroika. Em tempos conturbados, o jovem Baranov destaca-se na produção de reality shows, até ser convidado a “deixar de criar ficções para começar a criar a realidade” ao serviço de Vladimir Putin – aqui explicitamente nomeado, embora seja tratado com maior frequência pela alcunha “o Czar”. Em reacção àquilo que os russos percepcionam como uma série de humilhações por parte dos ocidentais, tem então lugar a reconstrução do imaginário colectivo da nação, bem como a exploração da nostalgia da ordem, do “orgulho de se pertencer a qualquer coisa de verdadeiramente grande”, e da demanda de sentido da juventude, visando a criação de uma nova elite de patriotas, disposta a tudo para que a Rússia retome o lugar que considera seu no palco mundial.
Através da memória deste processo, são revisitados episódios da história recente, como o desastre do submarino Kursk, ou as misteriosas explosões em áreas residenciais de Moscovo, atribuídas a terroristas chechenos e facilitadoras da ascensão de Putin. Já a insinuação do valor político da guerra no contexto do conflito no Donbass, caracterizado como uma “guerra patriótica…contra os nazis ucranianos e a decadência dos ocidentais”, investe a obra de um carácter premonitório, tendo em conta que foi lançada um mês antes da invasão da Ucrânia.
A escrita do autor faz lembrar um cristal de gelo, pois combina a beleza com a dureza e a frialdade do mundo retratado. Se isto não justificasse a atribuição do Grande Prémio do Romance da Academia Francesa 2022, acresceria ainda a representação credível da mente de Putin, dos efeitos da propaganda e de um Estado cujo cerne é a força. Baranov afirma que nenhum livro por si escrito estará à altura do verdadeiro jogo do poder, mas este parece aproximar-se bastante.
Sem Comentários